MEU QUARTO
Podemos sair de casa há anos, e o quarto que abandonamos é conservado pelos pais. Não modificam uma vírgula de nossa letra. Não alugam, não fazem reforma, não mudam as estantes, não trocam a pintura, a fechadura e os tapetes. Nós alteramos a infância, não os pais, que, em qualquer idade, nos enxergarão pequenos. Nos enxergarão como se ainda fosse possível resolver a tristeza e a dor com um colo.
Quando voltamos para a residência familiar, separados ou exilados, desempregados ou desencantados, descobrimos o quanto eles nos amam. Amam a criança que fomos. Nenhuma boneca foi jogada fora — enfileiradas pelo tamanho. Nenhum carinho, desperdiçado. As canetas coloridas da escola guardam tinta. As agendas estão na gaveta, com as fotos dos amigos e as primeiras confidências. Os pôsteres das bandas de rock, que hoje nem fazem sentido, permanecem atrás da porta branca. As revistas proibidas seguem escondidas em uma madeira solta debaixo da cama. A mesma cômoda onde escrevemos cartas de amor e varamos a noite estudando para as provas. O mesmo abajur preto, com problemas de contato. O mesmo enxoval, como se tivéssemos passado um longo final de semana fora (um final de semana que pode ter durado vinte anos) e retornássemos de uma hora para outra. O mesmo travesseiro com cheiro de nosso pijama. Os mesmos cabides e espelho. Até a pantufa nos aguarda com a plumagem desalinhada de ovelha.
Tudo em ordem e recente, a apagar que lacramos a porta com um adeus, a esquecer que viramos o rosto para sermos felizes com nossas famílias. Os filhos são dramáticos e se despedem com adeus, mas vão voltar, e voltam, mesmo que seja para se despedir verdadeiramente.
E não é apenas a aparência do quarto que resiste intacta. É o jeito como os pais nos tratam, sem censura e castigo, sem julgar as escolhas e precipitar arrependimentos. Em silêncio, a mãe fará o bolo de laranja predileto. Ruidoso, o pai perguntará se não queremos caminhar com ele. Ao sairmos, a mãe dirá para não esquecermos o casaco, o pai avisará para nos cuidarmos e voltarmos cedo. O tratamento é idêntico, insuportavelmente idêntico à adolescência. A velhice não ameaça o amor.
Apesar de confiarmos que somos outros, os pais continuam nossa vida. Não interessa a cor do cabelo, a tatuagem, o piercing, a cicatriz, a ferida, a alegria ressentida, os fios grisalhos e os divórcios, os pais acreditam que somos os mesmos. Somos as crianças que eles deixaram crescer.
(CARPINEJAR. Canalha! Retrato poético e divertido de um homem contemporâneo. 3ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 21-22.)
(4º Simulado Inédito ESA 2022 – Inédita - Prof.ª Fabíola Soares)
No último parágrafo do texto, o autor faz o seguinte apontamento: “Apesar de confiarmos que somos outros, os pais continuam nossa vida. Não interessa a cor do cabelo, a tatuagem, o piercing, a cicatriz, a ferida, a alegria ressentida, os fios grisalhos e os divórcios, os pais acreditam que somos os mesmos.”. Com base nessas palavras, aponte a alternativa que demonstra, conotativamente, a mesma ideia.