Vamos lá, Estrategista! Estamos com uma criança que vem apresentando, há 1 mês, sintomas clássicos de diabetes mellitus tipo I (poliúria, polidipsia e perda de peso). E há 2 dias levanta a suspeita de principal complicação do DM tipo I - cetoacidose diabética - ao apresentar vômitos, dor abdominal importante, taquipneia, hálito cetônico e desidratação.

Quando analisamos a gasometria percebemos uma acidemia (pH < 7,35) com bicarbonato baixo (HCO3 < 22 mEq/L) e alcalose respiratória compensatória (pCO2 < 35 mmHg). Temos uma acidose metabólica.

A fita urinária nos indica cetonúria moderada (mais de 2 cruzes), e a glicemia está elevada.

E, apesar de não termos o nível sérico de potássio, ao analisarmos o ECG, percebemos uma onda T achatada, indicando que já há repercussão elétrica de hipocalemia nessa criança!

Portanto, o que devemos fazer na primeira hora de atendimento dessa paciente? Expansão volêmica com SF 0,9%, e não devemos esperar o nível sérico de potássio para agirmos. Já sabemos que na cetoacidose o potássio corporal total estará baixo pela diurese osmótica, e, além disso, essa criança apresenta onda T achadata: COM CERTEZA O POTÁSSIO ESTÁ BAIXO. Como ela tem diurese efetiva (urinou 500ml só na admissão), não há contraindicação de repormos esse eletrólito.

Portanto alternativa correta letra B.

Aproveite para relembrar rapidamente os pontos mais importantes sobre o manejo da cetoacidose abaixo:

FISIOPATOLOGIA

A cetoacidose diabética (CAD) consiste em um conjunto de alterações clínico-laboratoriais decorrentes da falta de insulina e do excesso de hormônios contrarreguladores (cortisol, glucagon, GH e catecolaminas) em resposta a alguma situação de estresse.

Com a falta de insulina e a hipocaptação de glicose pelas células, iniciam as reações de gliconeogênese e glicogenólise hepáticas, proteólise nos músculos e lipólise no tecido adiposo, culminando em hiperglicemia e liberação de ácidos graxos livres.

O metabolismo de ácidos graxos levará à produção de corpos cetônicos (ácido beta-hidroxibutírico e ácido acetoacético), gerando cetonemia, cetonúria e acidose metabólica.

A hiperglicemia leva ao aumento da osmolaridade plasmática e diurese osmótica, causando espoliação corporal de sódio, potássio e fosfato, além de desidratação, que, por sua vez, pode gerar hipovolemia grave e choque.

Diante da hiperosmolaridade plasmática o sistema nervoso central ativa um mecanismo de defesa contra a desidratação neuronal: acumulam osmóis idiogênicos, na tentativa de equalizar a osmolaridade intracelular com a do plasma, a fim de não perder água para o meio extracelular.

QUADRO CLÍNICO E DIAGNÓSTICO

As principais causas de CAD são infecções, má aderência ao tratamento e estresse emocional.

Os principais sintomas são polidipsia, poliúria, polifagia, náuseas, vômitos, dor abdominal e perda ponderal acentuada em período curto de tempo.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (2024) e a International for Pediatric and Adolescent Diabetes (ISPAD) 2022 definem os seguintes critérios para o diagnóstico de CAD:

Os principais diagnósticos diferenciais são os erros inatos do metabolismo, intoxicação por salicilatos e teofilina.

Alterações laboratoriais possíveis na CAD:

- Hipocalemia: perda urinária pela diurese osmótica (potássio corporal total baixo), perda gastrointestinal pelos vômitos (potássio corporal total baixo), ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (potássio corporal baixo), tratamento com insulina (joga potássio para dentro da célula), correção da acidemica (joga potássio para dentro da célula).

- Hiponatremia dilucional: com a hiperglicemia ocorre aumento da osmolaridade plasmática, que puxa água de dentro das células para o meio intravascular, diluindo o sódio.

- Hipernatremia: por perda de água livre > perda de sódio (diurese osmótica, vômitos, diarreia, na vigência de ingestão insuficiente de água).

- Leucocitose: por efeito do cortisol, catecolaminas e acidose. Passa-se a suspeitar de infecção se >25.000 leucócitos e/ou > 10% bastões.

- Elevação de amilase e lipase: sem necessariamente significar presença de pancreatite.

- Hipofosfatemia: Fósforo corporal total baixo pela diurese osmótica

- Hiperlipidemia: pelo aumento da lipólise.

- Aumento do ânion gap (pelos corpos cetônicos). No entanto, Ânion gap > 35 mmol/L sugere acidose lática concomitante.

- Osmolalidade efetiva (mOsm/kg): = 2x (Na plasmático) + glicose plasmática (normal é de 275-295 mOsm/kg).

TRATAMENTO DA CETOACIDOSE:

1. Manejo inicial na emergência:

- Avaliação sequencial ABCDE conforme Suporte Avançado de Vida em Pediatria;

- Obtenção de 2 acessos venosos periféricos. Evitar ao máximo acesso venoso central pelo alto risco de trombose (paciente com hiperviscosidade sanguínea pela hiperosmolaridade).

- Dosagem sérica de glicose, cetonas, eletrólitos e gasometria;

- Dosagem de cetonas na urina

- Evitar ao máximo intubação orotraqueal (difícil manter pCO2 baixa como o paciente mantém diante da acidose metabólica, aumentando o risco de hipertensão intracraniana).

2. Reposição de volume

2a. Fase rápida:

- Se sinais de choque (pulsos finos, má perfusão periférica, rebaixamento de nível de consciência): até 3x bolus de 20 ml/kg/h SF 0,9%;

- Se ausência de sinais de choque: 10-20 ml/kg de SF 0,9% em 20-30 minutos.

2b. Reposição do déficit de volume extracelular em 24-48h:

As estimativas de déficit do volume extracelular em relação ao peso são mais bem definidas de acordo com a gravidade da cetoacidose (e não pelos sinais clínicos de desidratação, que são muito imprecisos).

- CAD leve: 5% depleção do volume extracelular

- CAD moderada: 7% de depleção do volume extracelular

- CAD grave e/ou sinais de choque: 10% de depleção do volume extracelular

Essa reposição de déficit pode ser feita com NaCl 0,45%, SF 0,9%, Ringer lactato ou Plasmalyte, e deve correr em paralelo com o soro de manutenção e demais medicações do tratamento da criança ao longo de 24-48 horas.

Não repor perdas urinárias de rotina.

Ex: Criança de 10 Kg com cetoacidose leve. Possui depleção de extracelular (em Litros) equivalente a 5% de 10 Kg = 0,05 x 10 = 0,5 L = 500ml. Que deverão ser infundidos ao longo de 24-48h.

Ex 2: Criança de 30 kg com cetoacidose grave. Possui depleção de extracelular (em Litros) equivalente a 10% de 30 Kg = 0,1 x 30 = 3 L. Que deverão ser infundidos ao longo de 24-48h.

2c. Soro de manutenção:

- 1500-2000 ml/m2/dia ou 100 ml/kcal/dia. Em crianças obesas utilizar o peso REAL (e não o peso ideal), porém respeitar o valor máximo de expansão volêmica de 1000 ml e velocidade máxima de infusão de fluidos de 100 ml/h.

- PECARN FLUID Trial: acompanhou resultados neurológicos em 1389 crianças com CAD. Não houve diferença significativa na frequência de estados mentais alterados, lesão cerebral ou resultado neurocognitivo a longo prazo entre o grupo que recebeu administração lenta de fluidos e o grupo que recebeu administração rápida. Por isso podem ser usados com segurança vários protocolos de fluido para o tratamento, variando a reposição de perdas de 5-10% do peso corporal, e utilizando fluidos com tonicidade entre 0,45% e 0,9%.

- A acidose metabólica hiperclorêmica é geralmente assintomática e desaparece espontaneamente. Para reduzir a carga de cloreto podemos substituir soro fisiológico por Ringer lactato ou Plasmalyte.

3. Reposição de potássio

- Iniciar a partir da 2ª hora de atendimento, desde que função renal preservada e K < 6,5 mEq/L (pela SBP) e K < 5,5 mEq/L (pela ISPAD).

- K 20-40 mEq/L de soro de hidratação.

4. Insulinoterapia

- Iniciar na 2ª hora de atendimento, após a expansão inicial de volume. Nunca realizar insulina em bolus (risco de edema cerebral e hipocalemia grave).

- Insulina regular 0,05 - 0,1 U/kg/h.

- Alvo: queda de glicemia de 60-80 mg/dL/h.

- Manter até resolução da CAD.

CRITÉRIOS OBRIGATÓRIOS PARA RESOLUÇÃO DA CAD:

- Glicemia < 200 mg/dL E

- pH > 7,3 ou bicarbonato > 18 mEq/L

- Ânion gap normal (10 - 14 mEq/L) ou beta-hidroxibutirato ≤ 1 mmol/L

CRITÉRIOS OBRIGATÓRIOS PARA PODER TRANSICIONAR DA INSULINA CONTÍNUA PARA INSULINA SUBCUTÂNEA INTERMITENTE:

1. CAD resolvida

2. Paciente apto a se alimentar

3. Primeira dose da insulina prandial aplicada 15-30 minutos (ISPAD) ou 2-4 horas (SBP) antes do desligamento da insulina contínua.

5. Não repor bicarbonato

SBP (2024): Aumenta o risco de edema cerebral, acidose paradoxal do sistema nervoso central, hipernatremia e hipocalemia. Utilizar somente se parada cardiorrespiratória com o intuito de preservar ação da adrenalina (extremamente controverso).

Pela ISPAD (2022): somente se pH < 6,9 e contratilidade cardíaca comprometida.

6. Reposição de fosfato

- Na CAD o fosfato corporal total estará baixo devido à diurese osmótica. Porém, na vigência de acidose, haverá troca do H+ extracelular com o PO4- intracelular. Assim, os níveis séricos de fosfato podem estar falsamente normais ou até elevados. Com o tratamento e a melhora da acidemia, o fosfato sérico voltará a cair, aumentando o risco de depressão respiratória, miocárdica e fraqueza muscular.

- Repor fósforo nos pacientes com fósforo sérico < 1 mg/dL.

COMPLICAÇÕES DA CETOACIDOSE:

- Edema cerebral: Ocorre por correção muito rápida da hiperglicemia, acidose e/ou cetonemia. O tratamento envolve manitol e/ou infusão de solução salina hipertônica 3%;

- Acidose hiperclorêmica;