Ora, graças a Deus, lá se foi mais um. Um ano, quero dizer. Menos um na conta, mais uma prestação paga. E tem quem fique melancólico. Tem quem deteste verà portaa cara do mascate em cada primeiro do mês, cobrando o vencido. Quando compram fiado, têm asensação de que o homem deu de presente, e se esquecem das prestações, que serão, cada uma, uma facada. Nem se lembram dessa outra prestação que se paga a toda hora, tabela Priceinsaciável comendo juros de vida, todo dia um pouquinho mais; um cabelo que fica branco, mais um milímetro de pele que enruga, uma camada infinitesimal acrescentada à artéria queendurece, um pouco mais de fadiga no coração, que também é carne e se cansa com aquele bater sem folga. E o olho que enxerga menos, e o dente que caria e trata de abrir lugar primeiro para o pivô, depois para a dentadura completa.
O engraçado é que muito poucos reconhecem isso. Convencem-se de que a morte chega de repente, que não houve desgaste preparatório, e nos apanha em plena flor da juventude, ou em plena frutificação da maturidade; se imaginam uma rosa que foi colhida em plena belezadesabrochada. Mas a rosa, se a não apanha o jardineiro, que será ela no dia seguinte, após o mormaço do sol e a friagem do sereno? A hora da colheita não interessa ― de qualquer modo,o destino dela era murchar, perder as pétalas, secar, sumir-se.
A gente, porém, não pode pensar muito nessas coisas. Tem que pensar em alegrias,sugestionar-se, sugestionar os outros. Vamos dar festas, vamos aguardar o ano novo comesperanças e risadas e beijos congratulatórios. Desejar uns aos outros saúde, riqueza e venturas. Fazer de conta que não se sabe; sim, como se a gente nem desconfiasse. Tudo que nos espera: dentro do corpo o que vai sangrar, doer, inflamar, envelhecer. As cólicas defígado, as dores de cabeça, as azias, os reumatismos, as gripes com febre, quem sabe o tifo, oatropelamento. Tudo escondido, esperando. Sem falar nos que vão ficar tuberculosos, nas mulheres que vão fazer cesariana. Os que vão perder o emprego, os que se verão doidos comas dívidas, os que hão de esperar nas filas ― que seremos quase todos. E os que, não morrendo, hão de ver a morte lhes entrando de casa adentro, carregando o filho, pai, amor,amizade. As missas de sétimo dia,as cartas de rompimento, os bilhetes de despedida. E até guerra, quem sabe? Desgostos,desgostos de toda espécie. Qual de nós passa um dia, dois dias, sem um desgosto? Quanto mais um ano!
Rachel de Queiroz. Um ano de menos.In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, dez./1951 (com adaptações).
Acerca das ideias e de aspectos linguísticos do texto precedente, julgue o item que se segue.
No quinto período do primeiro parágrafo, o emprego do sinal indicativo de crase no vocábulo “à”, em “à porta”, justifica-se pela combinação de dois fatores: a regência do verbo “ver” e o gênero feminino da palavra “porta”.