E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Cefaleia por Uso Excessivo de Medicamentos, condição caracterizada pelo agravamento ou pela manutenção diária da dor de cabeça em pacientes que utilizam analgésicos, triptanos ou outros fármacos de forma frequente e prolongada.
O Estratégia MED está aqui para descomplicar esse conceito e ajudar você a aprofundar seus conhecimentos, promovendo uma prática clínica cada vez mais eficaz e segura.
Vamos nessa!
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Definição
A cefaleia por uso excessivo de medicamentos é um distúrbio neurológico comum que surge quando pacientes com uma cefaleia primária prévia, como enxaqueca ou cefaleia tensional, passam a utilizar medicamentos de forma frequente para aliviar a dor e, inadvertidamente, transformam o próprio tratamento em causa do problema.
O uso repetido e excessivo de analgésicos, triptanos, ergotamínicos, opioides ou combinações medicamentosas leva a um ciclo vicioso no qual a dor de cabeça se torna cada vez mais frequente e persistente, evoluindo muitas vezes de um quadro episódico para uma cefaleia crônica.
Fisiopatologia
A fisiopatologia é complexa e multifatorial, envolvendo interação entre predisposição individual, alterações neurobiológicas e fatores comportamentais. O processo não é totalmente esclarecido, mas diversos mecanismos contribuem para o desenvolvimento e manutenção do quadro.
A condição ocorre apenas em pessoas que já possuem um transtorno de cefaleia prévio, como enxaqueca ou cefaleia tensional. Indivíduos sem histórico de dor de cabeça praticamente não desenvolvem o problema, mesmo usando analgésicos regularmente. Estudos mostram que pacientes com cefaleias episódicas são mais suscetíveis a transformar seu padrão em cefaleias diárias quando expostos ao uso repetido de medicamentos.
Há também participação de fatores genéticos. Pesquisas identificaram dezenas de genes e polimorfismos associados ao aumento do risco de desenvolver a doença, sugerindo que parte da vulnerabilidade decorre de características hereditárias que influenciam a resposta à dor e ao uso de analgésicos.
Um dos mecanismos centrais é a sensibilização central. Em pacientes com cefaleia crônica, há facilitação dos sistemas trigeminal e somatossensitivo, aumentando a excitabilidade das vias de dor. O uso contínuo de determinados fármacos pode agravar essa sensibilização.
Estudos experimentais mostram que triptanos usados diariamente podem reduzir a atividade dos receptores serotoninérgicos 5-HT1B e 5-HT1D e interferir na síntese de serotonina, prejudicando o controle inibitório da dor. Em humanos, isso se traduz em menor capacidade antinociceptiva e maior frequência ou persistência da cefaleia.
Alterações metabólicas também parecem desempenhar papel. Exames de PET com FDG em pacientes com enxaqueca e MOH mostram disfunção orbitofrontal persistente e mudanças reversíveis no metabolismo de estruturas envolvidas no processamento da dor após suspensão dos medicamentos, sugerindo que esse padrão pode predispor ao uso excessivo.
O uso prolongado de opioides provoca outras adaptações: aumento da expressão periférica de CGRP em neurônios aferentes e maior facilitação descendente da medula rostral ventromedial, além de aumento da transmissão excitatória no corno dorsal. Essas modificações tornam os circuitos de dor mais reativos e favorecem o surgimento e a manutenção da cefaleia.
Fatores biocomportamentais têm grande influência. Muitos pacientes apresentam medo da dor, ansiedade antecipatória e comportamento compulsivo de tomada de medicamentos, padrões semelhantes aos observados em transtornos por uso de substâncias. Alterações em regiões cerebrais relacionadas à recompensa e dependência, como o sistema mesocorticolímbico, reforçam essa hipótese.
Principais classes de medicamentos que podem causar cefaleia por uso excessivo de medicamentos
Diversas classes usadas no tratamento agudo das cefaleias podem desencadear cefaleia por uso excessivo de medicamentos. O risco varia entre os grupos, sendo mais elevado com opioides e barbitúricos, seguido por triptanos, analgésicos combinados e, em menor grau, anti-inflamatórios e outros analgésicos simples.
Opioides e barbitúricos
São os principais responsáveis por desencadear cefaleia por uso excessivo de medicamentos. Estudos mostram que o uso dessas substâncias dobra a chance de transformar uma enxaqueca episódica em cefaleia crônica. A exposição necessária para que isso ocorra é relativamente baixa, como cerca de oito dias por mês para opioides e cinco dias por mês para barbitúricos. Entre os barbitúricos, os medicamentos contendo butalbital estão entre os que mais frequentemente aparecem como causa em centros especializados.
Triptanos
Os triptanos apresentam risco intermediário a alto. A cefaleia por uso excessivo induzida por triptanos tende a surgir mais cedo do que a causada por ergots ou por analgésicos simples. O intervalo médio para o desenvolvimento do quadro é de aproximadamente 1,7 ano, menor do que o observado com outras classes.
Analgésicos simples e combinados
Analgésicos combinados, como acetaminofeno, aspirina e cafeína, possuem risco relativamente alto de desencadear cefaleia por uso excessivo de medicamentos. Já os analgésicos simples, apesar de terem risco menor individualmente, aparecem entre os mais utilizados devido ao fácil acesso e à automedicação. Em grandes estudos com pacientes com enxaqueca crônica, os analgésicos simples foram os mais frequentemente usados em excesso, seguidos pelos combinados e pelos triptanos.
Ergotamínicos
O risco associado aos ergotamínicos varia conforme o padrão de uso em cada país. Nas últimas décadas, a frequência de cefaleia por uso excessivo relacionada a ergots diminuiu devido à substituição dessa classe por medicamentos mais modernos. Em algumas regiões, sobretudo na América Latina, ainda há altas taxas de sobreuso quando o ergotamínico é combinado com cafeína ou codeína.
Lasmiditana
Os estudos ainda são limitados, mas sugerem que a lasmiditana apresenta risco moderado para desencadear cefaleia por uso excessivo de medicamentos. Algumas evidências experimentais indicam comportamento semelhante ao dos triptanos, embora ainda não haja dados clínicos robustos.
Anti-inflamatórios não esteroides
Os anti-inflamatórios tendem a ter risco baixo na maioria dos estudos, embora existam resultados divergentes. Em pessoas com baixa frequência de crises de cefaleia, esses medicamentos podem até exercer efeito protetor contra a cronificação da enxaqueca. No entanto, quando usados repetidamente em pessoas com episódios muito frequentes, também podem contribuir para o desenvolvimento do quadro.
Uso múltiplo de medicamentos
Muitos pacientes que desenvolvem cefaleia por uso excessivo utilizam simultaneamente mais de uma classe medicamentosa, o que dificulta a identificação de um único agente responsável. Em estudos, parte significativa dos pacientes fazia uso excessivo de duas ou até três categorias de medicamentos ao mesmo tempo.
Medicamentos com risco ainda incerto
Os antagonistas do CGRP possuem dados preliminares sugerindo baixa probabilidade de causar cefaleia por uso excessivo de medicamentos. Isso é coerente com sua utilização tanto no tratamento agudo quanto na prevenção da enxaqueca, embora mais estudos ainda sejam necessários.
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas da cefaleia por uso excessivo de medicamentos geralmente surgem em pacientes que já apresentavam uma cefaleia episódica prévia, como enxaqueca ou cefaleia tensional, e que passaram a utilizar medicamentos sintomáticos de forma frequente.
O alívio proporcionado por esses fármacos é apenas temporário, o que leva a um ciclo de uso repetido e, progressivamente, ao aumento da frequência das crises. Com o tempo, muitos pacientes passam a usar analgésicos diariamente ou quase diariamente, inclusive para evitar sintomas de abstinência do próprio medicamento.
A dor de cabeça costuma ocorrer diariamente ou quase todos os dias. A intensidade, o tipo e a localização da dor podem variar bastante entre os indivíduos. Além da dor, é comum a presença de náuseas, sensação de fraqueza, dificuldade de concentração, problemas de memória e irritabilidade.
As características da cefaleia podem depender da classe do medicamento que está sendo utilizado em excesso. Em estudos clínicos, observou-se que pacientes que fazem uso repetido de ergots ou de analgésicos combinados frequentemente apresentam um padrão de cefaleia semelhante ao da cefaleia tensional, com dor diária difusa. Já aqueles que utilizam triptanos em excesso tendem a apresentar uma dor mais parecida com enxaqueca diária, ou relato de aumento importante na frequência das crises de enxaqueca.
Diagnóstico
O diagnóstico da cefaleia por uso excessivo de medicamentos é clínico e depende da combinação entre a história do paciente, a evolução da cefaleia e o padrão de uso dos medicamentos.
Ele é sugerido quando um paciente com cefaleia prévia passa a apresentar dor em padrão crônico diário, associada ao uso frequente de fármacos sintomáticos. A confirmação exige avaliar quantos dias por mês o medicamento é utilizado e por quanto tempo esse padrão se mantém.
Como muitos pacientes omitem ou subestimam o uso real de analgésicos, especialmente os de venda livre, é importante esclarecer o mecanismo da doença para obter uma história mais precisa. Além disso, mesmo pacientes que ainda não apresentam quinze dias de dor por mês podem estar em processo de sobreuso e correm risco de cronificação. Outras causas de cefaleia crônica diária devem ser descartadas, e exames complementares são indicados quando há suspeita de cefaleia secundária.
Critérios diagnósticos da cefaleia por uso excessivo de medicamentos
- Cefaleia presente em quinze ou mais dias por mês em um paciente com cefaleia prévia;
- Uso regular de medicamentos sintomáticos por mais de três meses, obedecendo os seguintes limites:
- Dez dias ou mais por mês para ergotamínicos, triptanos, opioides ou analgésicos combinados;
- Quinze dias ou mais por mês para analgésicos simples, como acetaminofeno, aspirina ou anti-inflamatórios;
- O quadro não deve ser melhor explicado por outro diagnóstico da Classificação Internacional das Cefaleias.
Tratamento
Esclarecer o mecanismo da cefaleia por uso excessivo de medicamentos, reforçar os riscos do uso frequente de analgésicos e orientar sobre a importância da retirada gradual ou abrupta, conforme o caso. A educação melhora significativamente a adesão.
Início de terapia preventiva
Iniciar ou otimizar o tratamento preventivo no momento da suspensão do medicamento utilizado em excesso. Medicamentos preventivos incluem topiramato, betabloqueadores, bloqueadores de canal de cálcio, antidepressivos tricíclicos, anticonvulsivantes e, em casos selecionados, onabotulinumtoxinA. A escolha depende do tipo de cefaleia subjacente, comorbidades e histórico de tratamentos anteriores.
Interrupção do medicamento utilizado em excesso
- A suspensão costuma ser feita de forma abrupta, especialmente para analgésicos simples, combinados, ergotamínicos e triptanos;
- Para opioides, barbitúricos ou benzodiazepínicos, a retirada deve ser gradual ao longo de 2 a 4 semanas para evitar abstinência importante.
- Podem incluir piora da cefaleia, náuseas, irritabilidade, inquietação, ansiedade e distúrbios do sono. Esses sintomas podem durar de alguns dias até quatro semanas.
Terapias de transição (ponte)
Usadas quando a retirada do medicamento utilizado em excesso pode causar sintomas intensos ou risco de recaída. Opções incluem AINEs, corticosteroides, tizanidina, di-hidroergotamina, antieméticos (metoclopramida, proclorperazina, difenidramina), clonidina (útil em retirada de opioides) e fenobarbital (para quem usava butalbital ou outros barbitúricos).
Terapias IV em casos complexos
Em pacientes com cefaleia grave, uso prolongado de opioides ou falha de manejo ambulatorial, pode ser necessário tratamento hospitalar com di-hidroergotamina, lidocaína IV, hidratação, magnésio e antieméticos.
Abordagem específica segundo o tipo de medicamento
- Opioides, barbitúricos ou benzodiazepínicos: retirada gradual; uso de clonidina ou fenobarbital conforme o fármaco;
- Demais medicamentos: retirada abrupta; iniciar profilaxia e oferecer terapia de transição se necessário.
- Terapia cognitivo-comportamental e biofeedback ajudam a reduzir recaídas e melhorar o controle da cefaleia subjacente.
Medicação de resgate
Utilizada apenas durante o período de abstinção, com as mesmas opções das terapias de transição. Deve ser limitada a no máximo dois dias por semana.
Limites de uso após o tratamento
Para evitar nova cefaleia por uso excessivo de medicamentos:
- AINEs: menos de 6 dias por mês;
- Triptanos, ergotamina e analgésicos combinados: menos de 4 dias por mês;
- Gepantes: podem ser usados sem risco conhecido de causar cefaleia por uso excessivo de medicamentos.
De olho na prova!
Não pense que esse assuntos ficam de fora das provas de residência, concursos públicos e até das avaliações da graduação. Veja abaixo:
[SES-PE (2023)]
Uma paciente de 25 anos, portadora de enxaqueca desde a puberdade, observou aumento da frequência das crises, o que relacionava à tensão durante a preparação para o concurso da Residência Médica. Passou a usar paracetamol e codeína com frequência quase diária nos últimos seis meses. Há 20 dias, a cefaleia tornou-se praticamente contínua e não está melhorando com o aumento da dose dos analgésicos. O exame neurológico é totalmente normal e não há outros sintomas sistêmicos. Qual seria a melhor conduta neste momento?
A) Suspender imediatamente o uso do paracetamol-codeína.
B) Internar em regime de urgência para realizar ressonância magnética de encéfalo.
C) Prescrever um curso de sete dias de prednisona.
D) Proibir, em definitivo, o uso de opioides para o tratamento da enxaqueca.
E) Rever o diagnóstico de migrânea, pois a evolução está incompatível.
Comentário da questão:
Essa questão foi estrategicamente escolhida para discutirmos o manejo da cefaleia crônica por abuso de analgésicos. A resposta dada pela banca é polêmica, uma vez que, no mínimo, há duas alternativas corretas. Vejamos. O enunciado descreve um quadro típico de migrânea crônica, transformada a partir do uso excessivo de analgesia combinada, incluindo um opioide.
Diante desse quadro, qual é a conduta a ser tomada? Cessar o abuso de analgésico, motivo principal para o desfecho clínico, e, de fato, oferecer alternativa de tratamento. De preferência, iniciar profilaxia e ofertar via analgésica alternativa, o que, na maioria dos guidelines, seria feito com AINEs (posto que a paciente está usando analgésico simples com opioide), ou clorpromazina e, de acordo com poucos protocolos, corticoterapia. O problema da questão é considerar apenas um curso de corticoterapia como tratamento possível.
De fato, o uso de prednisona poderia ser uma alternativa (embora não seja a melhor). O problema é que é inadmissível não suspender o analgésico com opioide! Esse é o motivo da paciente estar com migrânea crônica. Iniciar o corticoide, sem retirar a analgesia combinada seria como abrir uma torneira que enche um balde furado.
É mais sensato, primeiro, fechar o furo que drena a água do balde. Sendo assim, entendo que a alternativa A é, no mínimo, também correta!
Aprenda mais!
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Referências
Ivan Garza, MDTodd J Schwedt, MD, MSCI. Medication overuse headache: Etiology, clinical features, and diagnosis. UpToDate, 2025. Disponível em: UpToDate
Fischer MA, Jan A. Medication-Overuse Headache. [Updated 2023 Aug 22]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK538150/



