E aí, doc! Vamos abordar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Distrofia Miotônica, uma doença genética que compromete progressivamente os músculos e outros sistemas do corpo, causando fraqueza muscular, miotonia e possíveis complicações multissistêmicas.
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Vamos nessa!
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Definição de Distrofia Miotônica
A distrofia miotônica (DM) é uma doença genética autossômica dominante, progressiva e multissistêmica, pertencente ao grupo das miopatias. Trata-se da forma mais comum de distrofia muscular com início na vida adulta.
Existem duas variantes principais: a distrofia miotônica tipo 1 (DM1), também chamada de doença de Steinert, descrita há mais de um século, e a distrofia miotônica tipo 2 (DM2), ou miopatia miotônica proximal, reconhecida mais recentemente e considerada, em geral, uma forma mais branda da condição.
Essas doenças apresentam heterogeneidade clínica e genética e afetam múltiplos sistemas do organismo. A distrofia miotônica envolve alterações no funcionamento da musculatura esquelética e de outros tecidos, o que faz com que indivíduos afetados possam buscar atendimento em diversas especialidades médicas antes de serem encaminhados ao neurologista.
Além disso, a DM1 possui uma forma congênita que pode se manifestar já no período neonatal, com impactos significativos no desenvolvimento. Por sua complexidade, a distrofia miotônica exige uma abordagem diagnóstica abrangente e integrada, envolvendo conhecimentos genéticos, neuromusculares e clínicos.
Etiologia da Distrofia Miotônica
A distrofia miotônica é causada por expansões anormais de repetições de nucleotídeos no DNA. Na distrofia miotônica tipo 1 (DM1), ocorre uma expansão de repetições CTG na região 3′ não traduzida do gene DMPK, no cromossomo 19.
Indivíduos saudáveis possuem até 34 repetições, enquanto pacientes com DM1 apresentam centenas a milhares. Já na distrofia miotônica tipo 2 (DM2), a expansão envolve repetições CCTG no intron 1 do gene CNBP (ou ZNF9), no cromossomo 3.
Essas repetições anômalas são transcritas em RNA, mas não são traduzidas, causando disfunções no processamento do RNA celular. A DM1 apresenta instabilidade intergeracional da repetição CTG, o que pode levar à antecipação genética, início mais precoce e maior gravidade da doença em gerações sucessivas.
Também há mosaicismo somático, com maior expansão em tecidos como cérebro, músculo esquelético e cardíaco. Na DM2, embora também exista instabilidade somática, a antecipação é rara e não há correlação clara entre o número de repetições e a gravidade clínica.
Fisiopatologia da Distrofia Miotônica
A distrofia miotônica representa um exemplo clássico de toxicidade do RNA como mecanismo de doença. Em ambos os tipos, DM1 e DM2, ocorre uma expansão de repetições nucleotídicas em regiões transcritas, mas não traduzidas, dos genes mutantes: DMPK (DM1) e CNBP/ZNF9 (DM2). Essas sequências anormais de RNA formam estruturas estáveis em “grampo de cabelo” que se acumulam no núcleo celular, onde passam a interferir no funcionamento normal das células.
Esse RNA mutante sequestra proteínas reguladoras do splicing, principalmente das famílias MBNL (Muscleblind-like) e CELF (CUG-BP and ETR-3-like factors). A consequência é uma alteração generalizada do splicing de diversos pré-mRNAs, afetando genes essenciais para o funcionamento muscular, cardíaco e metabólico.
Entre os genes afetados, destacam-se:
- BIN1, cujo splicing alterado prejudica a formação dos túbulos T e compromete o acoplamento excitação-contração muscular;
- CLCN1, canal de cloreto do músculo esquelético, cuja disfunção está relacionada à miotonia;
- Receptor de insulina, afetando a sensibilidade insulínica;
- Troponina T cardíaca, implicada na função cardíaca;
- NKX2-5, um fator de transcrição cardíaco, associado a distúrbios de condução elétrica no coração.
Esse desequilíbrio no processamento do RNA e a perda funcional de proteínas reguladoras levam à disfunção celular progressiva, especialmente em tecidos como músculo esquelético, cardíaco e sistema nervoso.
Fenótipos da Distrofia Miotônica
Os fenótipos da DM1 podem se apresentar de maneiras diversas, com graus variados de gravidade e idade de início. Essas formas clínicas incluem desde quadros leves, com sintomas como fraqueza muscular e catarata, até apresentações mais graves, com comprometimento cognitivo, respiratório e cardíaco.
Fenótipo | Número de repetições (CTG) | Idade de início | Manifestações clínicas | Prognóstico / Observações |
Congênito | >1000 (às vezes 730–1000) | Ao nascimento | Hipotonia grave, diplegia facial, artrogripose, insuficiência respiratória, disfagia | Alta mortalidade neonatal; herança materna (>90%); déficit cognitivo frequente |
Infantil | >500 (às vezes ≤500) | Antes dos 10 anos | Déficits cognitivos, TDAH, disfunção executiva, distúrbios de humor, miotonia tardia | Progressão para fraqueza; risco cardíaco na adolescência |
Clássico | 50–1000 | 20 a 40 anos | Miotonia, fraqueza distal, atrofia, catarata, calvície, alterações cardíacas | Expectativa de vida reduzida; acometimento multissistêmico |
Leve | 50–150 | Após os 40 anos | Catarata precoce, miotonia leve, pouca ou nenhuma fraqueza muscular | Expectativa de vida próxima ao normal |
Pré-mutação | 35–49 | — | Assintomático | Pode haver expansão na descendência |
Características clínicas da Distrofia Miotônica
As características clínicas da distrofia miotônica (DM) variam conforme o fenótipo, com a fraqueza muscular e a miotonia (relaxamento anormalmente lento após uma contração muscular) sendo manifestações comuns.
Fraqueza muscular
- DM1: Afeta músculos faciais, pescoço, mãos e pés, com progressão gradual da fraqueza dos músculos distais para os proximais, aumentando o risco de quedas.
- DM2: A fraqueza começa na região proximal, afetando músculos da cintura pélvica, coxas e quadris, dificultando atividades como levantar-se e subir escadas.
Dor muscular
- DM1 e DM2: A dor muscular é comum, especialmente nas pernas, e tende a ser exacerbada por exercício e mudanças de temperatura, sendo mais intensa em DM2.
Miotonia
- DM1: Miotonia é universal, especialmente nas mãos e dedos, com relaxamento muscular anormalmente lento após contrações.
- DM2: A miotonia é menos constante e ocorre em 75% dos pacientes, geralmente mais leve.
Anormalidades cardíacas
- DM1: Aparecem precocemente, com arritmias, bloqueio atrioventricular e cardiomiopatia, podendo levar a complicações graves.
- DM2: Há risco menor de problemas cardíacos, mas pode haver distúrbios de condução e disfunção ventricular esquerda.
Função respiratória
- DM1: A fraqueza dos músculos respiratórios pode levar à insuficiência respiratória, especialmente em formas graves da doença.
- DM2: Problemas respiratórios são raros, e a função respiratória é geralmente preservada.
Distúrbio do sono
- DM1: Pacientes frequentemente têm hipersonia e sonolência diurna excessiva devido a distúrbios centrais na regulação do sono.
Anormalidades endócrinas
- DM1: Frequentemente associada a hipogonadismo (diminuição da função das gônadas), levando à infertilidade, e menopausa precoce nas mulheres. Pacientes também têm alta prevalência de disfunções tireoidianas, como hipotireoidismo, além de resistência à insulina e diabetes tipo 2.
- DM2: Menos comuns, mas também podem ocorrer hipogonadismo, hipotireoidismo, resistência à insulina e síndrome metabólica, especialmente em adultos mais velhos.
Envolvimento gastrointestinal
- DM1: Pacientes frequentemente apresentam disfagia (dificuldade para engolir), constipação e motilidade intestinal reduzida devido à fraqueza muscular no trato gastrointestinal.
- DM2: Embora alguns sintomas como constipação e dificuldade de deglutição possam ocorrer, o impacto gastrointestinal é geralmente menor e menos grave do que em DM1.
Deficiência cognitiva
- DM1: Associada a déficits cognitivos que afetam principalmente memória de curto prazo, atenção e funções executivas. Pacientes podem ter dificuldades em tarefas complexas como planejamento e organização. Em formas graves, como a congênita, pode haver atraso no desenvolvimento cognitivo.
- DM2: A deficiência cognitiva é menos pronunciada, com dificuldades leves de memória e atenção, mas a função cognitiva tende a ser preservada por mais tempo.
Outras características
- Catarata: Comum em ambos os tipos, especialmente no DM1, com desenvolvimento precoce, frequentemente antes dos 40 anos, podendo causar perda de visão.
- Arritmias cardíacas: Mais prevalentes e graves no DM1, com risco de bloqueios atrioventriculares e fibrilação atrial. Em DM2, são menos severas.
- Alopecia e pele fina: Comum em DM1, especialmente nas formas mais graves, caracterizando ressecamento e afinamento da pele, além de queda de cabelo.
- Hiperinsulinemia e obesidade: Em DM2, a resistência à insulina pode levar à obesidade devido a disfunção metabólica e hipoglicemia reativa.
- Síndrome da apneia do sono: Comum em ambos os tipos, devido à fraqueza dos músculos respiratórios, causando dificuldades respiratórias e apneia do sono.
Diagnóstico de Distrofia Miotônica
O diagnóstico da distrofia miotônica tipo 1 (DM1) e tipo 2 (DM2) é geralmente clínico, confirmado por testes genéticos. A suspeita inicial surge com sinais como fraqueza muscular e miotonia. Pacientes com DM1 costumam procurar atendimento devido à deficiência intelectual e fraqueza muscular grave, enquanto os com DM2 apresentam dor muscular, rigidez, fadiga e fraqueza muscular proximal.
O diagnóstico clínico pode ser confirmado com a presença de fraqueza muscular e miotonia, além de histórico familiar positivo. A DM1 tende a afetar músculos como o pescoço, face e músculos distais, enquanto a DM2 afeta inicialmente os flexores do pescoço, dedos e cintura escapular, preservando os músculos da face e das mãos. O teste genético é o padrão-ouro, detectando a repetição expandida de CTG no gene DMPK para DM1 e a repetição CCTG no gene ZNF9 para DM2.
Embora a eletromiografia (EMG) não seja essencial, ela pode ser útil em casos atípicos para identificar miotonia elétrica. A miotonia no DM1 tende a ser crescente-decrescente, enquanto no DM2 é mais decrescente. A EMG deve incluir a avaliação de músculos distais, como tibial anterior e o primeiro interósseo dorsal.
Exames adicionais, como o eletrocardiograma (ECG), são importantes para detectar defeitos de condução cardíaca, e o exame com lâmpada de fenda pode revelar cataratas subcapsulares. A biópsia muscular tem papel limitado, mas pode ser útil em casos atípicos com fraqueza mínima ou elevações de creatina quinase.
O diagnóstico diferencial envolve outras miopatias hereditárias, como a miopatia de Welander, que pode ser distinguida com base em características clínicas, biópsia muscular e testes genéticos moleculares. Além disso, a miotonia elétrica também pode ser encontrada em miopatias não distróficas.
Manejo da Distrofia Miotônica
O manejo da distrofia miotônica (DM) é focado no tratamento de suporte, visando maximizar a saúde e a independência funcional, já que não existe tratamento curativo para a doença. Esse manejo envolve o monitoramento e tratamento das condições médicas associadas à DM, abordando várias áreas de cuidado:
Tratamento médico
- Cardiovascular: É fundamental o monitoramento cardíaco com eletrocardiograma de 12 derivações, realizado no diagnóstico e anualmente, para detectar distúrbios na condução cardíaca. A imagem cardíaca inicial e exames subsequentes a cada 1 a 5 anos também são recomendados.
- Pulmonar: Deve ser realizado um teste de função pulmonar basal e exames seriados para monitorar possíveis falências respiratórias neuromusculares.
- Sonolência diurna e apneia obstrutiva do sono: A avaliação para apneia do sono deve ser feita e, se necessário, o uso de CPAP (pressão positiva contínua nas vias aéreas) é prescrito. Além disso, estimulantes neurais, como o metilfenidato, podem ser considerados para o tratamento da sonolência excessiva.
- Comprometimento ocular: É recomendado um exame oftalmológico anual, incluindo a avaliação com lâmpada de fenda. Caso seja necessário, a remoção cirúrgica de cataratas que prejudicam a visão e a funcionalidade também é indicada.
- Cuidados obstétricos e ginecológicos: Mulheres com DM necessitam de uma avaliação obstétrica de alto risco, especialmente durante a gravidez, devido ao risco aumentado de aborto espontâneo, parto prematuro e dificuldades respiratórias durante a gestação.
- Problemas endócrinos: Pacientes com DM têm risco elevado de diabetes mellitus devido à resistência à insulina, sendo recomendados exames anuais de glicose em jejum e hemoglobina A1C. Também é necessário o rastreamento para hipotireoidismo. Homens com DM1 frequentemente apresentam hipogonadismo primário e disfunção erétil, devendo ser questionados sobre esses problemas e tratados caso o teste de testosterona mostre baixos níveis.
- Miotonia: O tratamento da miotonia envolve o uso de medicamentos que reduzem a miotonia sustentada, como bloqueadores dos canais de sódio (mexiletina), antidepressivos tricíclicos, benzodiazepínicos ou antagonistas de cálcio. Contudo, os bloqueadores dos canais de sódio são contraindicados em casos de bloqueio cardíaco de segundo ou terceiro grau.
Terapia física e ocupacional
É recomendado o uso de fisioterapia para o fortalecimento dos músculos enfraquecidos, avaliação para o uso de órteses e equipamentos médicos duráveis. A terapia de fonoaudiologia (SLP) também é indicada para pacientes com dificuldades de deglutição (disfagia) ou fala (disartria). Além disso, o SLP é fundamental para ajudar em deficiências intelectuais e no desenvolvimento de estratégias de aprendizagem.
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Referências
Basil T Darras, MD. Myotonic dystrophy: Etiology, clinical features, and diagnosis. UpToDate, 2024. Disponível em: UpToDate
Vydra DG, Rayi A. Myotonic Dystrophy. [Updated 2023 Jun 26]. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK557446/