E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Síndrome da Autocervejaria, uma condição rara em que o próprio organismo fermenta carboidratos em álcool, levando ao quadro de intoxicação alcoólica sem ingestão da substância.
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Vamos nessa!
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Definição de Síndrome da Autocervejaria
A síndrome da fermentação intestinal (SFI), também conhecida como síndrome da autocervejaria, é uma condição rara caracterizada pela produção endógena de etanol devido à fermentação realizada por microrganismos, como fungos e bactérias, presentes no organismo. Esse processo ocorre predominantemente no trato gastrointestinal, mas, em casos mais raros, pode acontecer na cavidade oral ou no sistema urinário.
Normalmente, a microbiota intestinal produz pequenas quantidades de etanol durante a digestão alimentar. No entanto, quando há um desequilíbrio no ambiente intestinal, certos microrganismos podem intensificar esse processo, levando ao acúmulo de álcool no organismo em níveis tóxicos.
Como consequência, indivíduos com SFI podem apresentar sintomas semelhantes à intoxicação alcoólica exógena, incluindo vertigem, confusão mental e alterações motoras, mesmo sem ingestão prévia de bebidas alcoólicas.
Além das manifestações clínicas, essa síndrome pode gerar impactos significativos na vida dos pacientes, como dificuldades no ambiente de trabalho, problemas legais e prejuízos nas relações interpessoais. O estigma associado ao alcoolismo frequentemente leva a diagnósticos errôneos, dificultando o reconhecimento e o manejo adequado dessa condição.
Etiopatogenia da Síndrome da Autocervejaria
A etiopatogenia da síndrome da autocervejaria envolve um processo multifatorial no qual microrganismos originalmente comensais no trato gastrointestinal passam a se comportar de maneira patogênica, promovendo a fermentação de carboidratos e a consequente produção endógena de etanol.
Os principais agentes envolvidos nessa síndrome incluem leveduras fermentadoras, como Saccharomyces cerevisiae, Saccharomyces boulardii e espécies do gênero Candida (C. albicans, C. glabrata, C. kefyr, C. parapsilosis e C. intermedia), bem como bactérias produtoras de etanol endógeno, como Klebsiella pneumoniae, Enterococcus faecium, Enterococcus faecalis e Citrobacter freundii.
A proliferação exacerbada desses microrganismos ocorre principalmente em um contexto de disbiose intestinal, um desequilíbrio na microbiota que favorece o crescimento descontrolado de espécies fermentadoras.
Fatores predisponentes incluem o uso excessivo de antibióticos, que pode reduzir a diversidade da microbiota intestinal, e dietas ricas em carboidratos, que fornecem um substrato abundante para a fermentação. Além disso, o etilismo crônico e padrões alimentares que promovem fermentação microbiana também estão associados ao desenvolvimento da síndrome.
Diversas comorbidades contribuem para a elevação dos níveis de etanol endógeno, incluindo diabetes mellitus e cirrose hepática, que comprometem o metabolismo do álcool e podem agravar os sintomas da síndrome.
Outros fatores de risco incluem predisposição genética, gastroenteropatias, doença hepática gordurosa não alcoólica, cirurgias gastrointestinais prévias, síndrome do intestino curto, obstrução intestinal crônica, supercrescimento bacteriano no intestino delgado (SCBID) e doença de Crohn, todas condições que favorecem modificações no microbioma intestinal e aumentam a susceptibilidade ao desenvolvimento da síndrome da autocervejaria.
Manifestações clínicas da Síndrome da Autocervejaria
A apresentação clínica pode variar conforme a quantidade de etanol gerado e os sistemas orgânicos afetados pela toxicidade alcoólica. Os sintomas podem ser intermitentes ou contínuos e tendem a piorar após a ingestão de alimentos ricos em carboidratos, que favorecem a fermentação.
Neurológicas
Os sintomas neurológicos são os mais marcantes e podem incluir:
- Alterações da fala (disartria ou fala arrastada);
- Visão turva ou dupla (diplopia) devido a disfunções oculomotoras;
- Déficit na coordenação motora, incluindo marcha atáxica e dificuldade para realizar movimentos precisos;
- Vertigem e tontura, levando a episódios de desequilíbrio e quedas frequentes;
- Confusão mental e amnésia, especialmente para eventos ocorridos durante episódios de “embriaguez”;
- Síncope (desmaios) em casos mais graves;
- Episódios convulsivos, geralmente relacionados a alterações metabólicas associadas à intoxicação alcoólica crônica;
- Veisalgia (ressaca), mesmo sem ingestão de álcool, com cefaleia, fadiga e mal-estar generalizado.
Psiquiátricas
As manifestações psiquiátricas podem ser confundidas com transtornos do humor ou distúrbios psiquiátricos primários:
- Confusão mental e dificuldade de concentração;
- Fadiga crônica, mesmo sem justificativa aparente;
- Alterações de humor, incluindo episódios depressivos ou irritabilidade inexplicável;
- Ansiedade e ataques de pânico, sem fatores desencadeantes evidentes;
- Desinibição social e comportamentos impulsivos, podendo levar a problemas interpessoais e dificuldades no trabalho;
- Déficit cognitivo leve, incluindo dificuldades de memória e tomada de decisões.
Gastrointestinais
Por ser um distúrbio relacionado à fermentação no trato gastrointestinal, os sintomas digestivos são comuns:
- Hálito etílico (odor alcoólico na respiração) sem ingestão de álcool;
- Eructação (arrotos) frequentes, devido à fermentação de carboidratos no intestino;
- Desconforto e inchaço abdominal, associado ao acúmulo de gases;
- Náuseas e vômitos, especialmente após refeições ricas em carboidratos;
- Diarreia episódica, relacionada à disbiose intestinal e à fermentação excessiva de açúcares.
Respiratórias
Embora menos frequentes, podem ocorrer sintomas respiratórios devido à irritação causada pela presença de etanol no organismo:
- Coriza persistente, sem associação com infecções virais;
- Tosse crônica, possivelmente devido à irritação do trato respiratório pelo etanol produzido endogenamente.
Outras manifestações e impacto na vida do paciente
Muitos pacientes são erroneamente diagnosticados com alcoolismo, enfrentam dificuldades em suas relações interpessoais e podem ser penalizados injustamente em situações legais, como testes de bafômetro em controles de trânsito. Relatos incluem:
- Histórico de quedas e lesões frequentes, decorrentes da ataxia e da vertigem;
- Acusações de consumo excessivo de álcool, especialmente em ambientes profissionais;
- Dificuldades em manter relacionamentos, devido às alterações de humor e episódios de desinibição social;
- Problemas trabalhistas e acadêmicos, causados pelo déficit cognitivo e fadiga crônica.
Diagnóstico de Síndrome da Autocervejaria
A Síndrome da Autocervejaria (SFI – Síndrome da Fermentação Intestinal) é diagnosticada por meio de uma abordagem detalhada que inclui avaliação clínica, exames laboratoriais e testes específicos.
Anamnese e Exame Físico
O primeiro passo na investigação envolve uma anamnese minuciosa, na qual se deve questionar o paciente sobre:
- Histórico alimentar, especialmente o consumo excessivo de carboidratos.
- Uso de medicações, incluindo antibióticos recentes, que podem alterar a microbiota intestinal.
- Episódios de intoxicação alcoólica sem ingestão de álcool.
- Presença de sintomas neurológicos como tontura, confusão mental e desorientação.
No exame físico, busca-se sinais sugestivos de intoxicação alcoólica, como hálito etílico, descoordenação motora e alterações comportamentais. Além disso, é fundamental descartar causas secundárias, como distúrbios psiquiátricos, doenças neurológicas e intoxicação exógena por álcool.
Exames Laboratoriais
A avaliação laboratorial inclui exames que ajudam a excluir outras condições e a confirmar o diagnóstico. Os principais exames incluem:
- Hemograma completo: pode indicar sinais de infecção ou anemia.
- Eletrólitos séricos: para avaliar possíveis alterações metabólicas.
- Exame toxicológico: para descartar intoxicação exógena por álcool ou outras substâncias.
- Dosagem de álcool no sangue: identifica a presença de etanol em pacientes que negam ingestão alcoólica.
- Função hepática (TGO, TGP, fosfatase alcalina): auxilia na avaliação da sobrecarga hepática devido à exposição crônica ao etanol endógeno.
- Glicemia e hormônio estimulador da tireoide (TSH): investigam distúrbios metabólicos que possam contribuir para os sintomas.
- Dosagem de vitaminas: avalia possíveis deficiências nutricionais associadas à condição.
Teste Provocativo: “Desafio de Carboidratos”
O diagnóstico confirmatório da SFI é realizado por meio do teste provocativo, que consiste em monitorar a produção de álcool no organismo após a ingestão de glicose. Esse teste pode ser feito de duas maneiras:
- Administração oral de 200 g de glicose após jejum noturno, seguida de medições seriadas dos níveis de etanol e glicose no sangue por até 24 horas.
- Dieta rica em carboidratos por um período determinado, com coletas sanguíneas para avaliar a produção de álcool endógeno.
Se os níveis de álcool aumentarem sem ingestão externa, o diagnóstico de SFI é confirmado.
Investigação Microbiológica
Para identificar o agente responsável pela fermentação excessiva no trato gastrointestinal, pode-se realizar:
- Cultura de fezes para detecção de leveduras como Saccharomyces cerevisiae e Candida sp.
- Endoscopia digestiva alta e colonoscopia com biópsia para cultura e testes de sensibilidade microbiológica.
Manejo da Síndrome da Autocervejaria
O manejo e tratamento da síndrome da autocervejaria envolvem a eliminação ou controle dos fatores que favorecem a proliferação dos microrganismos fermentadores. As abordagens incluem mudanças no estilo de vida, terapia antimicrobiana, probiótica e, em casos refratários, transplante de microbiota fecal.
As modificações na dieta são fundamentais, com restrição de carboidratos para reduzir os substratos fermentáveis e aumento da ingestão de proteínas. Além disso, o uso de antibióticos deve ser criterioso, sendo indicado apenas quando necessário e com acompanhamento microbiológico.
A terapia antimicrobiana é baseada na cultura e sensibilidade dos patógenos identificados. Como a maioria dos casos envolve fungos, antifúngicos como Fluconazol, Itraconazol e Nistatina são frequentemente utilizados. Antibióticos são administrados apenas quando há presença de bactérias específicas. A terapia probiótica, especialmente com Lactobacillus acidophilus, pode ser utilizada como complemento ao tratamento antifúngico para restaurar o equilíbrio da microbiota intestinal.
Nos casos crônicos e refratários, o transplante de microbiota fecal surge como alternativa promissora. O procedimento envolve a seleção de doadores, preparo da amostra e administração da solução, sendo uma estratégia que pode se tornar padrão com mais estudos clínicos.
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Referências
MALIK, Fahad; WICKREMESINGHE, Prasanna; SAVERIMUTTU, Jessie. Case report and literature review of auto-brewery syndrome: probably an underdiagnosed medical condition. BMJ Open Gastroenterology, v. 6, e000325, 2019. DOI: 10.1136/bmjgast-2019-000325.
OLIVEIRA, Yasmmin Linda de et al. Conhecendo a síndrome de autofermentação: etiopatogenia, apresentação e abordagem. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 7, n. 3, p. 01-13, maio/jun. 2024. DOI: 10.34119/bjhrv7n3-147.