E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Intoxicação por Paracetamol, uma das causas mais comuns de insuficiência hepática aguda no mundo, resultante do consumo excessivo desse analgésico amplamente utilizado.
O Estratégia MED está aqui para descomplicar esse conceito e ajudar você a aprofundar seus conhecimentos, promovendo uma prática clínica cada vez mais eficaz e segura.
Vamos nessa!
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Definição de Intoxicação por Paracetamol
A intoxicação por paracetamol (acetaminofeno) é uma condição potencialmente grave causada pela ingestão excessiva desse medicamento, amplamente utilizado como analgésico e antipirético.
Embora seja considerado seguro em doses terapêuticas, o uso acima do limite recomendado pode provocar necrose hepática aguda, tornando-se uma das principais causas de falência hepática e transplante de fígado em todo o mundo. Nos Estados Unidos, é a principal causa de insuficiência hepática aguda.
A toxicidade ocorre porque o excesso de paracetamol satura as vias normais de metabolização no fígado, levando à formação e acúmulo do metabólito tóxico NAPQI (N-acetil-p-benzoquinona imina), que causa lesão oxidativa e morte das células hepáticas. Além do comprometimento hepático, a intoxicação também pode afetar os rins, resultando em insuficiência renal.
Cerca de metade dos casos são não intencionais, frequentemente relacionados à ingestão simultânea de diversos produtos que contêm paracetamol ou à interpretação incorreta das doses recomendadas.
Quando reconhecida e tratada precocemente, especialmente com carvão ativado nas primeiras horas e N-acetilcisteína (NAC) até 8 horas após a ingestão, a taxa de mortalidade é baixa. No entanto, o atraso no diagnóstico e no início do tratamento pode levar à falência hepática fulminante.
Fisiopatologia da Intoxicação por Paracetamol
A intoxicação por paracetamol (acetaminofeno) ocorre quando a dose ingerida excede a capacidade do fígado de metabolizar o fármaco pelas vias normais. Após a ingestão, o paracetamol é rapidamente absorvido pelo trato gastrointestinal, atingindo níveis terapêuticos em 30 minutos a 2 horas, ou até 4 horas em casos de superdose.
Cerca de 90% do fármaco é metabolizado no fígado pelas enzimas sulfotransferase e UDP-glicuroniltransferase, originando metabólitos não tóxicos excretados na urina. Aproximadamente 8% é metabolizado pelo citocromo P450 (CYP2E1, CYP1A2 e CYP3A4), gerando o metabólito NAPQI (N-acetil-p-benzoquinona imina), altamente reativo e tóxico. Em doses normais, o NAPQI é neutralizado pela glutationa hepática, mas em superdoses ocorre saturação metabólica e depleção da glutationa, permitindo o acúmulo do NAPQI.
O metabólito tóxico liga-se covalentemente a proteínas mitocondriais, formando adutos NAPQI-proteína, o que desencadeia lesão oxidativa, perda da função mitocondrial e necrose hepatocelular centrolobular. Esses danos ativam processos secundários como peroxidação lipídica, liberação de radicais livres, citocinas inflamatórias e resposta imune mediada por DAMPs, agravando a destruição hepática.
Fatores como alcoolismo crônico, jejum prolongado, desnutrição, uso de indutores enzimáticos, tabagismo e idade avançada aumentam o risco de hepatotoxicidade. Já crianças menores de 5 anos são menos suscetíveis devido à maior regeneração da glutationa e maior atividade das enzimas de conjugação.
Manifestações Clínicas da Intoxicação por Paracetamol
A intoxicação por paracetamol apresenta uma evolução clínica característica, dividida em quatro estágios, que refletem a progressão da lesão hepática e sistêmica. A maioria dos pacientes é assintomática nas primeiras horas ou apresenta sintomas inespecíficos, o que pode atrasar o diagnóstico.
Estágio I (30 minutos a 24 horas)
Os pacientes podem estar assintomáticos ou apresentar sintomas leves e inespecíficos, como náuseas, vômitos, sudorese, palidez, letargia e mal-estar. Os exames laboratoriais geralmente são normais, mas pode haver elevação discreta das aminotransferases após 8 a 12 horas. Em casos de ingestão maciça (acima de 30 g), podem surgir depressão do sistema nervoso central e acidose metabólica com aumento do ânion gap.
Estágio II (24 a 72 horas)
O paciente pode apresentar melhora clínica aparente, embora os exames laboratoriais piorem. Surgem sinais de hepatotoxicidade e nefrotoxicidade, como dor no quadrante superior direito, hepatomegalia, alteração do tempo de protrombina (TP), aumento da bilirrubina total, oligúria e alterações da função renal. Em alguns casos, pode ocorrer pancreatite aguda.
Estágio III (72 a 96 horas)
É o período mais grave, com pico das aminotransferases (podendo ultrapassar 10.000 UI/L) e manifestações de insuficiência hepática aguda. Os sintomas incluem icterícia, confusão mental, hipoglicemia, acidose láctica, hiperamonemia, tendência a sangramentos e recorrência dos sintomas gastrointestinais iniciais.
Aproximadamente 50% dos pacientes com falência hepática e 10% a 25% com dano hepático significativo desenvolvem insuficiência renal aguda. Este é o estágio mais associado à morte, geralmente por falência multissistêmica.
Estágio IV (após 4 a 7 dias)
Corresponde à fase de recuperação nos pacientes que sobrevivem ao estágio anterior. Os sintomas e alterações laboratoriais começam a melhorar, podendo levar semanas para completa normalização. O fígado apresenta regeneração histológica e a função renal tende a se recuperar entre 1 e 4 semanas, embora alguns pacientes necessitem de diálise temporária.
Diagnóstico da Intoxicação por Paracetamol
A avaliação deve começar com a identificação do agente envolvido, a quantidade ingerida, o tempo desde a ingestão e a presença de coingestões ou condições clínicas associadas, como uso de álcool, doenças hepáticas ou medicações indutoras de enzimas hepáticas.
Mesmo pacientes assintomáticos devem ter o nível sérico de paracetamol dosado assim que chegam ao serviço de saúde. Se o momento da ingestão for desconhecido, deve-se realizar a dosagem imediatamente e repetir o exame 4 horas após a primeira amostra. Outros exames laboratoriais importantes incluem:
- Aminotransferases (ALT e AST);
- Tempo de protrombina (TP) e INR;
- Eletrólitos, ureia e creatinina;
- Bilirrubina total;
- Amilase e exame de urina;
- Gasometria arterial ou venosa e lactato em pacientes graves ou com alteração do nível de consciência;
- Teste de gravidez em mulheres em idade fértil;
- Eletrocardiograma e rastreamento de outras drogas em casos de overdose intencional
A dosagem sérica do paracetamol deve ser interpretada com base no nomograma de Rumack-Matthew Revisado, que indica a necessidade de iniciar o tratamento com N-acetilcisteína (NAC). Se o tempo de ingestão for superior a 8 horas ou desconhecido, o uso de NAC deve ser empírico, sem aguardar os resultados laboratoriais.
Nos casos de ingestão de formulações de liberação prolongada ou associadas a opioides ou anticolinérgicos, o nomograma ainda pode ser usado, mas pode ser necessário repetir a dosagem de paracetamol 4 a 6 horas depois, especialmente se o nível inicial estiver acima de 10 mcg/mL.
Tratamento da Intoxicação por Paracetamol
O tratamento da intoxicação por paracetamol depende essencialmente do tempo decorrido desde a ingestão e visa prevenir ou minimizar a lesão hepática. As principais medidas envolvem descontaminação gastrointestinal precoce e administração de N-acetilcisteína (NAC), que é o antídoto específico.
Descontaminação gastrointestinal
Se o paciente for atendido até 1 hora após a ingestão, recomenda-se o uso de carvão ativado, que reduz a absorção do fármaco. Alguns estudos indicam benefícios de até 4 horas após a ingestão, especialmente em casos de doses elevadas ou uso de formulações de liberação prolongada.
O carvão é contraindicado em casos de obstrução gastrointestinal ou via aérea não protegida. Procedimentos como lavagem gástrica e irrigação intestinal total não são recomendados.
Uso da N-acetilcisteína (NAC)
A N-acetilcisteína é o tratamento de escolha, com maior eficácia quando iniciada até 8 horas após a ingestão. Ela atua repondo a glutationa, neutralizando o metabólito tóxico NAPQI e reduzindo o estresse oxidativo hepático.
- A decisão de iniciar NAC é baseada no nomograma de Rumack-Matthew Revisado, considerando o nível sérico de paracetamol.
- Em ingestões maiores que 150 mg/kg ou 7,5 g quando não há resultados laboratoriais em até 8 horas, o tratamento deve ser iniciado empiricamente;
- Também é indicado o uso de NAC em pacientes com dano hepático evidente, níveis de paracetamol ≥20 mcg/mL, ou ingestão repetida e supraterapêutica;
- O benefício pode ser observado até 24 horas após a ingestão.
Formas de administração da N-acetilcisteína
A NAC pode ser administrada por via oral ou intravenosa (IV), ambas eficazes.
- Via oral: dose inicial de 140 mg/kg, seguida de 70 mg/kg a cada 4 horas por 18 doses (total de 72 horas).
- Via intravenosa (protocolo de 21 horas):
- 150 mg/kg em 60 minutos (dose de ataque);
- 50 mg/kg nas 4 horas seguintes;
- 100 mg/kg nas 16 horas seguintes.
- Há também um protocolo simplificado de 20 horas, que reduz o risco de reações adversas e mantém a eficácia.
Reações não alérgicas, semelhantes à anafilaxia, podem ocorrer com a forma IV, especialmente nas primeiras 5 horas.
Casos graves e medidas complementares
Pacientes que ingeriram doses superiores a 30 g ou apresentam níveis séricos acima de 900 mcg/mL são considerados de alto risco e podem necessitar de intubação, suporte hemodinâmico e bicarbonato para acidose metabólica. Nesses casos, o carvão ativado e a NAC devem ser iniciados imediatamente, e pode ser indicada hemodiálise, principalmente quando há falência renal, acidose grave ou superdosagem extrema.
Monitoramento e critérios para interromper o tratamento
Durante o tratamento, devem ser avaliados níveis séricos de paracetamol, AST, ALT e INR a cada 12 horas. Se as transaminases ultrapassarem 1000 UI/L, é necessário monitorar encefalopatia, glicemia, creatinina e equilíbrio ácido-base.
A NAC deve ser mantida até que o paciente apresente:
- Nível de paracetamol <10 mcg/mL;
- INR <2,0;
- ALT e AST normais ou com redução ≥25–50% do pico;
- Melhora clínica evidente.
Em casos de falência hepática fulminante, a NAC deve ser continuada até o transplante hepático, recuperação ou óbito.
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Referências
Agrawal S, Murray BP, Khazaeni B. Acetaminophen Toxicity. [Updated 2025 Apr 10]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK441917/



