Olá, querido doutor e doutora! As malformações müllerianas são anomalias congênitas do trato reprodutivo feminino que podem passar despercebidas até a idade reprodutiva. Entre elas, destaca-se o útero bicorno, frequentemente associado a perdas gestacionais recorrentes, partos prematuros e dor pélvica cíclica.
A diferenciação entre útero bicorno e septado é fundamental, pois a abordagem terapêutica é completamente distinta.
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Definição e Classificações
O útero bicorno é uma anomalia congênita que resulta da fusão incompleta dos ductos de Müller durante o desenvolvimento embrionário. Em vez de formar uma única cavidade uterina, a fusão parcial leva à presença de duas cavidades endometriais separadas, parcialmente ou completamente, geralmente associadas a uma única vagina e com uma ou duas cérvices.
Essa malformação é frequentemente descrita como tendo um aspecto de fundo uterino escavado, com entalhe fundico superior a 10 mm, o que ajuda a distingui-la de outras anomalias, como o útero septado.
A classificação tradicional da American Society for Reproductive Medicine (ASRM) inclui o útero bicorno como classe IV entre as anomalias müllerianas. Ele é subdividido em:
- Útero bicorno completo (IVa): separação total das cavidades uterinas, geralmente com dois colos uterinos (bicollis).
- Útero bicorno parcial (IVb): separação incompleta, com uma única cérvice (unicollis), mas persistência de duas cavidades endometriais.
Já a classificação da ESHRE/ESGE o descreve como útero bicorpóreo (U3) e inclui três variantes:
- U3a: bicorpóreo parcial;
- U3b: bicorpóreo completo;
- U3c: bicorpóreo com septo uterino associado.
Embriogênese e etiopatogenia
O desenvolvimento normal do sistema reprodutor feminino depende da formação, fusão e reabsorção adequada dos ductos de Müller (paramesonéfricos) durante a embriogênese. Esse processo ocorre em três fases principais:
- Fase de morfogênese – os ductos de Müller se formam paralelamente aos ductos de Wolff por volta da 6ª a 7ª semana gestacional.
- Fase de fusão – entre a 9ª e 12ª semana, os ductos de Müller se unem no plano mediano, formando o canal uterovaginal, que dará origem ao útero e à parte superior da vagina.
- Fase de reabsorção do septo – a parede que separa os ductos fundidos deve ser reabsorvida, resultando em uma cavidade única.
No útero bicorno, há uma falha na fase de fusão dos ductos de Müller, gerando duas cavidades uterinas laterais, que podem ou não estar conectadas por um segmento uterino comum. Essa falha pode ser parcial ou total, determinando a variedade anatômica da anomalia.
Do ponto de vista molecular, há indícios de que alterações na expressão de genes reguladores do desenvolvimento mülleriano, como HOXA9–13, WNT4, WNT7A e PAX2, estejam envolvidos. Embora a causa exata não seja totalmente conhecida, acredita-se que haja uma interação entre fatores genéticos e ambientais na origem dessa anomalia.
Importante destacar que, por compartilharem uma origem embriológica comum, é comum a associação entre malformações uterinas e anormalidades do trato urinário, como agenesia renal unilateral ou duplicação pieloureteral.
Epidemiologia e associação com infertilidade
O útero bicorno é considerado uma anomalia relativamente rara na população geral, com prevalência estimada entre 0,4% e 1%. No entanto, essa taxa aumenta significativamente entre mulheres com queixas ginecológicas reprodutivas.
Estudos demonstram que entre mulheres com histórico de:
- infertilidade, a prevalência chega a 1,1%;
- abortos espontâneos, sobe para 2,1%;
- infertilidade associada a perdas gestacionais, pode alcançar 4,7%.
Essa malformação está associada a desfechos gestacionais desfavoráveis, incluindo:
- abortos de repetição no primeiro e segundo trimestres;
- parto prematuro (<37 semanas);
- apresentação fetal anômala;
- baixo peso ao nascer.
Apesar de muitas pacientes com útero bicorno conseguirem engravidar espontaneamente, há maior risco de perdas precoces e complicações obstétricas, o que justifica o rastreio dessa anomalia em mulheres com histórico reprodutivo desfavorável.
Além disso, 25% das pacientes com útero bicorno apresentam um septo vaginal longitudinal, o que pode causar obstrução parcial, dispareunia ou dificuldade no uso de absorventes internos – sintomas que, se reconhecidos precocemente, podem indicar a necessidade de avaliação anatômica uterina
Avaliação clínica
A manifestação clínica do útero bicorno é bastante variável. Muitas mulheres permanecem assintomáticas, sendo o diagnóstico realizado apenas durante uma investigação por infertilidade ou após perdas gestacionais repetidas.
Quando presentes, os sintomas ginecológicos mais comuns incluem:
- Dismenorreia, geralmente lateralizada;
- Dor pélvica cíclica, associada a hemivaginas obstruídas;
- Fluxo menstrual normal, mas com relatos de vazamento menstrual ao usar tampões, especialmente em casos com septo vaginal associado;
- Dispareunia em pacientes com septo longitudinal não diagnosticado.
Do ponto de vista reprodutivo, o útero bicorno pode se manifestar com:
- Abortos espontâneos recorrentes (1º e 2º trimestres);
- Parto prematuro, especialmente <32 semanas;
- Apresentações anômalas do feto (pélvica, transversa);
- Restrição de crescimento fetal intrauterino;
- Maior chance de rotura uterina durante o trabalho de parto;
- Falha na progressão do trabalho de parto, com necessidade aumentada de parto cesáreo.
No exame físico, o útero bicorno pode passar despercebido em casos não obstrutivos, mas variantes associadas a septo vaginal ou obstrução podem revelar achados sugestivos. À inspeção ou toque vaginal, pode-se identificar um septo longitudinal (com ou sem obstrução), duplicidade cervical ou desvio da cérvice. Em adolescentes, especialmente virgens, o toque retal pode permitir a identificação de massa pélvica dolorosa ou de duas estruturas uterinas separadas. Em situações com acúmulo menstrual (como hematocolpos), há possibilidade de abaulamento vaginal ou massa abdominal hipogástrica palpável. Esses achados, embora inespecíficos, devem direcionar a investigação por imagem.
Diagnóstico
Ultrassonografia
A ultrassonografia transvaginal é o exame de primeira linha. Embora a versão bidimensional possa sugerir duplicidade uterina, a ultrassonografia tridimensional (3D) oferece melhor definição, permitindo avaliação simultânea do contorno externo do fundo uterino e da configuração interna das cavidades endometriais. Um entalhe fundico superior a 10 mm é sugestivo de útero bicorno, enquanto incisões menores apontam para útero septado.
Ressonância magnética (RM)
A ressonância magnética da pelve é considerada o método mais preciso para o diagnóstico. Ela permite avaliação multiplanar da anatomia uterina, cervical e vaginal, e é especialmente útil para distinguir o útero bicorno do septado ou do didelfo. Além disso, facilita a identificação de malformações associadas, como agenesia renal, comum nas variantes obstrutivas.
Histerossalpingografia (HSG)
Embora amplamente utilizada na investigação da infertilidade, a HSG tem limitações importantes. Ela mostra bem a duplicidade de cavidades, mas não avalia o contorno externo do útero, o que dificulta a diferenciação entre útero bicorno e septado. Por isso, não deve ser utilizada isoladamente em casos suspeitos de anomalias congênitas uterinas.
Histeroscopia e laparoscopia
A associação entre histeroscopia e laparoscopia diagnóstica é considerada o padrão-ouro para diferenciação de malformações uterinas em casos duvidosos. A laparoscopia permite observar o contorno externo do útero, enquanto a histeroscopia avalia diretamente a cavidade interna. Esse recurso é reservado para situações em que os exames não invasivos são inconclusivos ou quando se planeja correção cirúrgica.
Tratamento
Conduta expectante em casos assintomáticos
Pacientes com útero bicorno sem sintomas e com boa evolução reprodutiva geralmente não necessitam de intervenção. A conduta expectante é aceitável, desde que haja seguimento clínico e obstétrico adequado. A descoberta incidental da anomalia, por exemplo, durante uma cesariana ou investigação por outro motivo, não implica obrigatoriamente em tratamento cirúrgico.
Controle dos sintomas e manejo conservador
Nos casos com dor cíclica associada a obstrução parcial, como em hemivaginas obstruídas, pode-se considerar o uso de terapias hormonais supressoras do eixo menstrual (como anticoncepcionais combinados em regime contínuo ou progestagênios) até que se defina a necessidade de abordagem cirúrgica.
Indicação cirúrgica
A intervenção cirúrgica é reservada para casos sintomáticos com impacto reprodutivo, especialmente mulheres com abortos de repetição, parto prematuro recorrente, ou dificuldade para engravidar, após exclusão de outras causas. O procedimento indicado nesses casos é a metroplastia, uma técnica de unificação das cavidades uterinas.
Metroplastia abdominal e laparoscópica
A metroplastia de Strassman, realizada por via abdominal tradicional, consiste em uma incisão transversa sobre o fundo uterino, exposição das duas cavidades, remoção do septo e reconstrução da cavidade única com sutura em plano vertical. Atualmente, a via laparoscópica tem sido cada vez mais adotada, pois oferece recuperação mais rápida, menor risco de aderências e melhor preservação da anatomia pélvica.
Abordagens associadas
Nos casos em que há septo vaginal longitudinal sintomático, pode-se realizar sua ressecção cirúrgica no mesmo tempo da metroplastia ou em momento separado, conforme avaliação clínica. Já em pacientes com hemivagina obstruída e hematocolpos, a drenagem cirúrgica da cavidade associada é necessária.
Cerclagem cervical
Embora exista risco aumentado de insuficiência cervical em mulheres com útero bicorno, o uso rotineiro de cerclagem profilática ainda é controverso. Em gestantes com história de perda tardia ou encurtamento cervical documentado, a medida pode ser considerada de forma individualizada.
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Referências Bibliográficas
- KAUR, Parneet; PANNEERSELVAM, Deepan. Bicornuate Uterus. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025.
- WARREN, Michael S. et al. Congenital Anomalies of Female Reproductive Tract. DynaMed. EBSCO Information Services, 2025.