E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Síndrome da Má Absorção, um conjunto de distúrbios que comprometem a absorção de nutrientes no trato gastrointestinal, podendo levar a deficiências nutricionais e complicações sistêmicas.
O Estratégia MED está aqui para descomplicar esse conceito e ajudar você a aprofundar seus conhecimentos, promovendo uma prática clínica cada vez mais eficaz e segura.
Vamos nessa!
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Definição de Síndrome da Má Absorção
A síndrome de má absorção intestinal refere-se a um conjunto de distúrbios caracterizados pela incapacidade do organismo de absorver adequadamente os nutrientes da dieta, o que pode ocorrer devido a falhas na digestão, na absorção pela mucosa intestinal ou no transporte de nutrientes para a circulação. Essa condição pode resultar de diversos fatores, incluindo insuficiência enzimática, inflamação da mucosa intestinal ou anormalidades estruturais e funcionais do trato gastrointestinal.
A má absorção pode estar associada a condições como pancreatite crônica, doença celíaca e doenças intestinais inflamatórias, levando a sintomas que variam desde manifestações clássicas, como diarreia crônica, esteatorreia (excesso de gordura nas fezes), emagrecimento e desnutrição, até sinais mais discretos, como distensão abdominal e flatulência. Além disso, pode haver repercussões sistêmicas, incluindo anemia ferropriva, perda óssea, atraso no crescimento e distúrbios hormonais.
Atualmente, o diagnóstico da síndrome de má absorção tornou-se mais eficiente devido aos avanços em exames laboratoriais e de imagem, permitindo uma abordagem individualizada e ágil. A identificação precoce e o tratamento adequado são essenciais para evitar complicações nutricionais e melhorar a qualidade de vida dos pacientes afetados.
Etiologia e classificação fisiopatológica
A síndrome da má absorção pode ter diversas causas e mecanismos fisiopatológicos, que afetam a digestão e a absorção de nutrientes no trato gastrointestinal. Para entender melhor essa condição, a classificação é dividida em três fases principais:
- Fase luminal (pré-entérica): refere-se ao processamento inicial dos nutrientes no lúmen intestinal. Distúrbios nessa fase podem ser causados por insuficiência pancreática exócrina, deficiência de sais biliares ou alterações na motilidade gastrointestinal.
- Fase mucosa (entérica): envolve a digestão final na borda em escova das células intestinais e a absorção pelos enterócitos. Lesões da mucosa, como na doença celíaca, doença de Crohn e infecções intestinais, podem comprometer essa fase.
- Fase de transporte (pós-entérica): relacionada à passagem dos nutrientes absorvidos para a circulação sanguínea e linfática. Doenças linfáticas, como linfangiectasia intestinal primária e fibrose retroperitoneal, podem afetar essa etapa.
Distúrbios na Mistura
Pacientes submetidos à gastrectomia parcial com reconstrução a Billroth II podem desenvolver síndrome da má absorção devido à liberação inadequada de secreções biliares e pancreáticas, que ocorre distante do local onde o quimo chega ao jejuno. Esse desbalanço compromete a digestão e absorção dos nutrientes. Além disso, essas anastomoses criadas pelo procedimento favorecem o supercrescimento bacteriano, o que agrava ainda mais a má absorção.
Distúrbios na Hidrólise Luminal dos Nutrientes (Lipólise)
A digestão luminal dos lipídios depende da ação da lipase pancreática, enzima essencial para a degradação dos triglicerídeos da dieta. A deficiência dessa enzima pode ocorrer em diversas condições, como:
- Déficit enzimático congênito (deficiência congênita de lipase pancreática).
- Hipersecreção ácida gástrica, como na síndrome de Zollinger-Ellison (gastrinoma), que inativa as enzimas pancreáticas.
- Doenças pancreáticas, como fibrose cística, pancreatite crônica e neoplasias pancreáticas, que levam à destruição da glândula e à redução da produção de enzimas digestivas.
Esses distúrbios afetam a digestão adequada das gorduras, comprometendo a absorção de ácidos graxos essenciais e vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K).
Distúrbios na formação de micelas
Após a lipólise, os ácidos graxos e o glicerol interagem com sais biliares e fosfolipídeos para formar micelas, que são essenciais para a absorção de lipídios, colesterol e vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K). A deficiência na formação de micelas pode ocorrer devido a alterações na síntese, transporte ou reabsorção dos sais biliares, resultando em má absorção de nutrientes.
Diminuição na síntese ou transporte/secreção de sais biliares
Doenças hepáticas e colestáticas, como a cirrose biliar primária, podem comprometer a síntese e secreção dos sais biliares, levando à má absorção. Uma das principais manifestações associadas é a doença óssea, incluindo osteoporose e osteomalácia.
Supercrescimento bacteriano
O supercrescimento bacteriano no intestino delgado pode resultar da redução da secreção ácida gástrica (gastrite atrófica, uso de antiácidos, cirurgias gástricas) ou da diminuição da motilidade intestinal (diabetes melito, esclerodermia).
Esse crescimento excessivo de bactérias leva à desconjugação precoce dos sais biliares, prejudicando a formação de micelas e resultando em má absorção de gorduras e vitaminas lipossolúveis. Além disso, as bactérias utilizam a vitamina B12 e liberam proteases que degradam dissacaridases, comprometendo ainda mais a digestão. O tratamento envolve antibióticos e correção dos fatores predisponentes.
Ressecção ileal ou doença ileal
A perda de sais biliares devido à deficiência na reabsorção no íleo terminal ocorre em pacientes submetidos a enterectomia ou com doenças ileais, como doença de Crohn, tuberculose e linfoma.
Quando o comprometimento ileal é inferior a 100 cm, a principal manifestação é a diarreia aquosa. Se a extensão for maior, pode ocorrer esteatorreia, litíase biliar e renal, além de doença óssea. O tratamento inclui o uso de colestiramina, antidiarreicos e reposição de vitamina B12 e nutrientes essenciais.
Distúrbios na hidrólise da borda em escova
A borda em escova do intestino delgado é responsável pela hidrólise final dos carboidratos antes de sua absorção. Distúrbios nesse processo podem levar à má absorção de nutrientes, resultando em sintomas gastrointestinais.
Intolerância à Lactose
A deficiência adquirida de lactase é a principal causa de má absorção seletiva de carboidratos. Pode ocorrer devido à redução na síntese da enzima, defeitos no transporte intracelular ou falhas na glicosilação da lactose. Essa condição é altamente prevalente em populações afrodescendentes e asiáticas, além de pacientes com AIDS.
Os sintomas incluem dor abdominal em cólica, flatulência e eructações após o consumo de leite e derivados. Secundariamente, pode ocorrer diarreia osmótica, decorrente da fermentação da lactose pelas bactérias colônicas, produzindo ácidos graxos de cadeia curta.
Algumas doenças podem causar deficiência secundária e reversível de lactase, como:
- Gastroenterite aguda (viral ou bacteriana);
- Giardíase;
- Doença celíaca;
- Supercrescimento bacteriano.
O diagnóstico é feito pelo teste do hidrogênio expirado após sobrecarga de lactose. O tratamento inclui uma dieta pobre em lactose e o uso de suplementos da enzima lactase em comprimidos.
Intolerância à Trealose
A trealose é um dissacarídeo encontrado em cogumelos e outros vegetais. A deficiência da enzima trealase impede sua digestão, levando a sintomas semelhantes à intolerância à lactose, como dor abdominal, diarreia e flatulência.
O tratamento baseia-se na restrição alimentar de alimentos ricos em trealose.
Distúrbios na absorção pela mucosa
A mucosa intestinal desempenha um papel essencial na absorção de nutrientes. Alterações estruturais ou funcionais podem comprometer esse processo, levando a quadros de má absorção e desnutrição. Entre as principais causas, destacam-se infecções, doenças inflamatórias e efeitos adversos da radioterapia.
Infecção por Giardia intestinalis
A giardíase é uma causa frequente de má absorção, especialmente em países em desenvolvimento. O protozoário Giardia intestinalis (anteriormente chamado de Giardia lamblia) pode causar desde infecções assintomáticas até quadros graves de diarreia crônica, esteatorreia, desnutrição e retardo do crescimento.
Fatores como hipogamaglobulinemia, alta densidade parasitária e a virulência do patógeno influenciam a gravidade da infecção. A histologia revela atrofia subtotal das vilosidades, hiperplasia de criptas e infiltração linfocitária intraepitelial. Além da enteropatia, o supercrescimento bacteriano e a desconjugação de sais biliares contribuem para os sintomas clínicos.
Doença de Whipple
Causada pelo Tropheryma whipplei, essa doença multissistêmica compromete não apenas o trato gastrointestinal, mas também o sistema nervoso central, coração, articulações e outros órgãos.
O diagnóstico é realizado por biópsia duodenal, que revela macrófagos espumosos PAS-positivos. O tratamento consiste no uso prolongado de antibióticos, como sulfametoxazol e trimetoprima, geralmente por um ano. A recidiva é comum após a interrupção da terapia.
Espru tropical
O espru tropical é uma síndrome de má absorção de etiologia incerta, afetando habitantes e visitantes de regiões tropicais e subtropicais.
Os pacientes apresentam diarreia crônica e má absorção de nutrientes, como xilose e vitamina B12. Evidências sugerem colonização bacteriana do intestino delgado e infecção por protozoários, como Cryptosporidium sp., Isospora sp. e Cyclospora sp..
Enterite actínica
Pacientes submetidos à radioterapia para tumores pélvicos podem desenvolver distúrbios de absorção, mesmo décadas após o tratamento.
A enterite actínica compromete a absorção de sais biliares, vitamina B12 e lactose, resultando em diarreia persistente. O achado histológico característico é a endarterite obliterativa de pequenos vasos. Estudos indicam que a terapia com câmara hiperbárica de oxigênio pode aliviar os sintomas.
Distúrbios no transporte de nutrientes
Os distúrbios no transporte de nutrientes podem comprometer a absorção adequada de macronutrientes e micronutrientes, resultando em desnutrição, diarreia e outros sintomas sistêmicos. Esses distúrbios podem ser causados por alterações na drenagem linfática, perda de proteínas e condições de etiologia desconhecida.
Distúrbios na drenagem linfática
O sistema linfático desempenha um papel essencial na absorção de lipídeos e proteínas. O aumento da pressão nos vasos linfáticos pode levar à perda ou ruptura desses vasos, resultando em extravasamento de lipídeos, gamaglobulina, albumina e linfócitos para o lúmen intestinal. Isso leva a quadros de diarreia e edema devido à hipoalbuminemia.
As principais causas desse distúrbio incluem:
- Linfangiectasia intestinal congênita primária; e
- Linfangiectasia secundária, associada a:
- Linfoma
- Tuberculose
- Blastomicose
- Lúpus eritematoso sistêmico
- Doença de Crohn
- Sarcoma de Kaposi
- Fibrose retroperitoneal
- Pericardite constritiva
- Insuficiência cardíaca congestiva avançada
Enteropatia perdedora de proteínas
Várias doenças podem levar à enteropatia perdedora de proteínas, caracterizada pela perda excessiva de proteínas plasmáticas para o trato gastrointestinal. Essa condição pode ocorrer devido a dano da mucosa intestinal ou alteração da drenagem linfática.
Entre as principais causas, destacam-se:
- Doenças com dano da mucosa:
- Linfoma
- Doença celíaca
- Espru tropical
- Doença de Whipple
- Lúpus eritematoso sistêmico (LES)
- Supercrescimento bacteriano
- Doenças com lesão linfática:
- Linfangiectasia intestinal
- Doenças linfoproliferativas
Mecanismos não totalmente esclarecidos
Algumas doenças podem levar à síndrome de má absorção sem que o mecanismo exato seja completamente compreendido. Entre elas, destacam-se:
- Hipoparatireoidismo
- Insuficiência suprarrenal
- Hipertireoidismo
- Síndrome carcinoide
Essas condições podem comprometer a função intestinal por mecanismos hormonais e metabólicos ainda não totalmente elucidados.
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Referências
ZATERKA, Schlioma; PASSOS, Maria do Carmo Friche; CHINZON, Décio (Eds.). Tratado de gastroenterologia: da graduação à pós-graduação. 3. ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2023.