E aí, doc! Bora mergulhar em mais um tema crucial? Hoje o destaque vai para a Síndrome do QT curto, uma condição cardíaca rara que pode levar a arritmias graves e até morte súbita, marcada por um intervalo QT anormalmente reduzido no eletrocardiograma.
O Estratégia MED está aqui para te ajudar a entender melhor esse quadro, fortalecendo seu raciocínio clínico e contribuindo para uma atuação médica ainda mais precisa e segura.
Vamos nessa!
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Definição de Síndrome do QT curto
A Síndrome do QT Curto (SQTS) é uma canalopatia hereditária rara, descrita pela primeira vez como entidade clínica no início dos anos 2000, caracterizada por uma redução do intervalo QT no eletrocardiograma (ECG), geralmente inferior a 360 milissegundos.
Trata-se de uma condição associada ao risco aumentado de arritmias atriais e ventriculares, podendo levar à morte súbita cardíaca (MSC), mesmo em indivíduos com coração estruturalmente normal. Ao contrário da síndrome do QT longo, que também é uma canalopatia, a SQTS resulta de alterações nos canais iônicos que levam à abreviação anormal da repolarização ventricular.
A definição do limite inferior do intervalo QT ainda é motivo de discussão. Um estudo populacional com 14.379 indivíduos saudáveis propôs uma fórmula para o QT previsto (QTp), conhecida como fórmula de Rautaharju: QTp = 656 / (1 + frequência cardíaca/100).
Com base nela, considera-se QT curto valores inferiores a 88% do QTp para determinada frequência cardíaca. Por exemplo, com uma frequência de 60 bpm, o QTp seria de 410 milissegundos, e 88% disso equivale a 360 ms. QT inferiores a 80% do QTp (aproximadamente 330 ms para 60 bpm) são considerados extremamente curtos.
Geneticamente, a SQTS é uma condição heterogênea, associada a mutações em pelo menos oito genes diferentes, os quais codificam canais iônicos cardíacos, um transportador de carnitina e um trocador aniônico cloreto-bicarbonato.
Base genética
A Síndrome do QT Curto (SQTS) possui base genética heterogênea, com mutações em oito genes, incluindo canais de potássio, cálcio, transportador de carnitina e trocador cloreto-bicarbonato. A herança é autossômica dominante, e muitas mutações envolvem genes também ligados à Síndrome do QT Longo, mas com efeito oposto, aumento da repolarização.
A forma mais comum (SQT1) está relacionada ao gene KCNH2. Outras mutações envolvem KCNQ1, KCNJ2, genes dos canais de cálcio (CACNA1C, CACNB2, CACNA2D1), o transportador de carnitina (SLC22A5) e o trocador AE3 (SLC4A3).
Estudos recentes indicam que apenas algumas variantes têm evidência sólida de causar a SQTS, especialmente nos genes KCNH2, KCNQ1, KCNJ2 e SLC4A3. A maioria dos casos ainda não tem causa genética definida.
Base celular da arritmologia
A base celular da arritmogênese na Síndrome do QT Curto (SQTS) envolve um desequilíbrio entre correntes iônicas durante a repolarização ventricular, levando ao encurtamento do potencial de ação, da refratariedade e do intervalo QT. Esse encurtamento pode ocorrer por aumento das correntes de potássio (SQT1-3) ou redução da corrente de cálcio (SQT4-6), favorecendo a repolarização precoce.
A repolarização é heterogênea, o que aumenta a dispersão transmural (TDR), predispondo à reentrada e arritmias ventriculares, como a taquicardia ventricular polimórfica. Mecanismos como reentrada na fase 2 ou pós-potenciais tardios podem atuar como gatilhos para arritmias.
Apesar do encurtamento da repolarização elétrica, a contração mecânica permanece preservada, indicando dissociação eletromecânica. A razão Tpeak-Tend/QT, marcador de TDR, está aumentada em muitos casos e associada a sintomas.
Manifestações clínicas da Síndrome do QT curto
As manifestações clínicas da Síndrome do QT Curto (SQTS) são bastante variáveis, e muitos pacientes permanecem assintomáticos. Quando presentes, os sintomas podem surgir desde o primeiro mês de vida até a idade avançada. As principais manifestações incluem parada cardíaca, palpitações, síncope e fibrilação atrial.
A morte súbita cardíaca (MSC) é uma das formas mais graves de apresentação e pode ocorrer em repouso, durante atividades rotineiras, esforço físico ou até mesmo após estímulos como um ruído intenso. Em alguns casos, a SQTS tem sido associada à síndrome da morte súbita infantil (SIDS).
Estudos mostram que aproximadamente um terço dos casos apresenta MSC como primeiro evento clínico, e até 80% dos pacientes têm histórico pessoal ou familiar de morte súbita. Embora a doença atinja ambos os sexos, há leve predominância em homens, possivelmente relacionada à ação da testosterona sobre correntes de potássio.
Pacientes sintomáticos apresentam maior risco de eventos arrítmicos recorrentes, com risco elevado de morte súbita em todas as faixas etárias. Alguns subtipos genéticos, como o SQT2, estão associados a maior incidência de bradiarritmias e fibrilação atrial.
Achados ecocardiográficos também sugerem que pode haver alterações na função sistólica, indicando possíveis repercussões mecânicas associadas à anormalidade elétrica.
Diagnóstico de Síndrome do QT curto
A avaliação diagnóstica da Síndrome do QT Curto (SQTS) envolve uma abordagem abrangente:
Avaliação clínica inicial
Como em todo caso de sobrevida à morte súbita cardíaca (MSC), deve-se realizar anamnese e exame físico detalhado para excluir outras causas, como isquemia, miocardite ou cardiomiopatias. SQTS deve ser considerada em jovens com fibrilação atrial isolada e intervalo QT curto.
Eletrocardiograma (ECG)
O principal achado é o QTc anormalmente curto (<360 ms), geralmente entre 210 e 320 ms. Outros achados incluem:
- Ausência do segmento ST
- Ondas T altas e pontiagudas, muitas vezes simétricas
- Baixa adaptação do QT à frequência cardíaca
- Intervalo Tpeak-Tend prolongado
- Depressão do segmento PQ (comum em SQTS, raro em indivíduos saudáveis)
- Padrão de repolarização precoce (elevação do ponto J) em até 65% dos casos
Em variantes genéticas como SQT4-6, pode haver sobreposição com padrão de Brugada nos eletrodos precordiais direitos (V1-V3).
Estudo eletrofisiológico (EPS)
Pode revelar períodos refratários atriais e ventriculares muito curtos e alta indução de fibrilação atrial ou ventricular, mas seu valor prognóstico é limitado.
Monitoramento adicional
Holter ou ECGs de longa duração são úteis para avaliar o QT em repouso (frequência cardíaca entre 50 e 70 bpm), já que a correção por fórmulas como a de Bazett pode ser imprecisa.
Teste genético
Recomendado quando a suspeita clínica e eletrocardiográfica é alta. Deve ser conduzido com especialistas em arritmias hereditárias. A identificação de mutações facilita o rastreamento familiar.
Triagem de familiares
Parentes de primeiro grau devem realizar ECG e, se possível, teste genético. Aqueles com mutação identificada devem ser acompanhados por cardiologista especializado.
Manejo da Síndrome do QT curto
O manejo da síndrome do QT curto (SQTS) depende da probabilidade diagnóstica da condição e da presença de sintomas ou histórico familiar de morte súbita cardíaca. A seguir, são descritas as principais abordagens conforme o perfil do paciente:
Pacientes com baixa probabilidade de SQTS
Esses pacientes apresentam intervalo QT entre 330 e 360 ms, sem história clínica pessoal, familiar ou critérios genéticos compatíveis com SQTS. Nestes casos, não se recomenda tratamento específico, seja medicamentoso ou com dispositivos. Essa conduta segue diretrizes como as da AHA/ACC/HRS de 2017.
Pacientes com probabilidade intermediária
Incluem aqueles com QT < 330 ms, mas também sem critérios adicionais clínicos ou genéticos. Embora os dados sobre esse grupo sejam escassos, a recomendação é semelhante à anterior: não iniciar tratamento farmacológico ou com dispositivos, mas encaminhar para avaliação com especialista em eletrofisiologia e considerar triagem genética.
Pacientes com alta probabilidade de SQTS
Incluem indivíduos com QT < 350 ms e presença de sintomas, histórico familiar de morte súbita ou mutações genéticas associadas. Nesses casos, o risco de arritmias ventriculares e morte súbita é elevado. O manejo inclui:
- Implante de cardiodesfibrilador (CDI): indicado para prevenção primária e secundária. Deve ser considerado mesmo diante de estudo eletrofisiológico negativo, dado o risco residual. O CDI é classe I para pacientes sintomáticos com diagnóstico confirmado de SQTS, incluindo sobreviventes de parada cardíaca.
- Terapia farmacológica: usada como complemento ao CDI ou alternativa quando o implante não é viável (por exemplo, em crianças pequenas ou recusa do paciente). O fármaco com mais evidência é a quinidina, especialmente em casos com mutações no gene KCNH2 (SQT1). Ela atua bloqueando múltiplas correntes iônicas, o que a torna eficaz mesmo em mutações que tornam o canal insensível a outros antiarrítmicos.
- Outros antiarrítmicos: drogas como disopiramida, amiodarona e sotalol mostraram eficácia variável em casos isolados ou pequenos grupos. A escolha deve considerar o tipo genético da síndrome, sempre que possível.
- Ablação por radiofrequência: há relatos limitados de sucesso, sendo considerada apenas em casos muito específicos, como controle de extrassístoles ventriculares recorrentes.
- Manejo da fibrilação atrial: alguns pacientes com SQTS apresentam apenas essa manifestação. Propafenona e quinidina demonstraram benefício em séries pequenas de casos.
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Referências
Charles Antzelevitch, PhD, FACC, FAHA, FHRS. Short QT syndrome. UpToDate, 2024. Disponível em: UpToDate
Rudic B, Schimpf R, Borggrefe M. Short QT Syndrome – Review of Diagnosis and Treatment. Arrhythm Electrophysiol Rev. 2014 Aug;3(2):76-9. doi: 10.15420/aer.2014.3.2.76. Epub 2014 Aug 30. PMID: 26835070; PMCID: PMC4711567.