E aí, doc! Vamos ver um caso clínico? O tema de hoje é Dispepsia, um quadro clínico bem corriqueiro na Clínica Médica e na Gastroenterologia.
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Identificação
Paciente JVSS, 24 anos, sexo masculino, solteiro, entregador de aplicativo, natural de Volta Redonda – RJ
Queixa Principal (QP)
Queimação no estômago há 6 meses.
História da Moléstia Atual (HMA)
Paciente é encaminhado ao ambulatório de Gastroenterologia com queixas de dores e desconfortos na parede superior do abdômen, sensação de queimação no estômago, náuseas, arrotos constantes, sensação de saciedade precoce e inchaço abdominal.
O paciente relata a presença de dor em região epigástrica, sem irradiação, caracterizada como uma queimação que se inicia após a ingestão de alimentos, sendo mais pronunciadas após alimentos gordurosos e condimentados, e perdura por aproximadamente 2 horas. A intensidade da dor é moderada, avaliada como 5/10 na escala analógica visual. A duração dos sintomas é de 6 meses, sem períodos de remissão significativa. O paciente relata tentativas de automedicação com antiácidos, sem alívio substancial dos sintomas. O paciente descreve episódios recorrentes de náuseas, particularmente após as refeições.
Não há relato de vômitos, mas a sensação de mal-estar persiste por um período variável após a alimentação. O paciente nega alterações no hábito intestinal, não apresentando diarreia ou constipação notáveis. Não há presença de sangramento nas fezes.
Interrogatório Sistemático (IS)
Geral: Nega astenia, fraqueza, tonturas; alteração no humor, peso, temperatura, sono.
Pele: Nega alterações nos fâneros, cianose, coloração anormal, equimoses, lesões, palidez, petéquias, prurido.
Músculo-esquelético: Nega dor, calor, rubor em articulações ou músculos, parestesias.
Cabeça: Nega cefaleia, alteração da acuidade visual, dor nos olhos, lacrimejamento, vermelhidão nos olhos, diplopia, acuidade auditiva, otalgia, otorreia, zumbidos.
Respiratório: Nega dor torácica ventilatório-dependente, dispneia, epistaxe, espirros, hemoptise, obstrução nasal, prurido nasal, rinorreia, rouquidão, sibilância, tosse.
Cardiovascular: Nega alteração do ritmo cardíaco, cianose, palpitações, sopros.
Digestivo: Vide HMA.
Genitourinário: Nega alteração da cor da urina, alteração do jato urinário, alterações menstruais, corrimento vaginal ou uretral, disúria, polaciúria e poliúria.
Neurológico: Nega alteração da marcha ou do equilíbrio, convulsões, desmaios, dislalias, disartria, paralisias, paresias, parestesias, perda de memória, vertigens.
Exame Físico
Altura: 1,71 m Peso: 70 Kg IMC: 23,9 FC: 80 bpm FR: 13 ipm PA: 128×84
Geral: BEG, orientado, hidratado, normocorado, nutrido, fácies atípico, acianótico, anictérico, condições de higiene adequadas, sem postura preferencial.
Pele e fâneros: normocorados, quantidade e distribuição adequados ao sexo e idade; unhas coradas e lisas. Turgor firme e sem edemas.
Cabeça e Pescoço: forma normal, sem lesões aparentes. Olhos, ouvidos, nariz e boca sem anormalidades, dentes em perfeito estado de conservação. Orofaringe sem hiperemia em úvula e palato, sem presença de petéquias, sem hipertrofia de amígdalas.
Aparelho respiratório: Tórax e pulmões: simétricos, sem esforço respiratório. Expansibilidade preservada bilateralmente. FTV uniformemente palpável bilateralmente. Som claro atimpânico à percussão. MVBD s/ RA
Aparelho cardiovascular: Precórdio normodinâmico. Ictus invisível, palpável em 5º EIC na LHCE medindo cerca de 2 polpas digitais, não propulsivo. RCR 2T c/ BNF. Ausência de sopros ou extrassístoles. Pulsos arteriais periféricos simétricos, sincrônicos e com boa amplitude.
Abdome: plano, sem lesões de pele, cicatrizes, circulação colateral ou herniações. RHA+ nos quatro quadrantes. e ausência de sopros em focos arteriais abdominais, Espaço de Traube livre. Abdome levemente doloroso à palpação superficial e profunda em região epigástrica. Ausência de massas e visceromegalias. Som timpânico à percussão.
Exames Laboratoriais
Hemograma: Hemácias: 4,5 milhões/mm3 [VR: 4,00 a 5,00 milhões/mm3]; Hemoglobina: 14,6 g/dL [VR: 13 a 16,0 g/dL]; Hematócrito: 38,2 % [VR: 36 a 47 %]; Vol. Globular Médio: 78,3 fL [VR: 80 a 99 fl] Hem. Globular Média: 29,2 pg [VR: 27 a 33 pg] C.H. Globular Média: 34 g/dL [VR: 32 a 36 g/dL] RDW: 11% [VR: Até 16,0%].
TGO – AST: 19,1 U/L [VR: Inferior a 32,0 U/L]
TGP – ALT: 13,9 U/L [VR: Inferior a 33,0 U/L]
AMILASE: 72,0 U/L [VR: 28,0 a 100,0 U/L]
LIPASE: 30 U/L [VR: 60 U/L]
Hipóteses Diagnósticas
Gastrite: Inflamação da mucosa gástrica, a gastrite pode se manifestar com desconforto abdominal, náuseas e sensação de queimação. Sinais endoscópicos podem auxiliar na diferenciação.
Dispepsia funcional: A dispepsia funcional é caracterizada por sintomas digestivos, como queimação estomacal, náuseas, arrotos e inchaço abdominal, sem uma origem clara identificada. Sua inclusão no rol de possíveis diagnósticos diferenciais destaca a importância de uma abordagem abrangente para descartar outras condições gastrointestinais que podem apresentar manifestações similares.
Definição de Dispepsia
A dispepsia é um sintoma comum que pode ter várias causas e origens. Cerca de 20% da população experimenta esse desconforto, embora as taxas de ocorrência possam variar dependendo dos critérios diagnósticos utilizados.
Muitas pessoas que sofrem de dispepsia não procuram ajuda médica para seus sintomas. Apesar de não representar uma ameaça à vida, a dispepsia gera custos substanciais no sistema de saúde e impacta negativamente na qualidade de vida das pessoas afetadas.
Etiologias da Dispepsia
A dispepsia secundária a doença orgânica apresenta diversas causas, sendo as principais a úlcera péptica, Helicobacter pylori, refluxo gastroesofágico, medicamentos (especialmente anti-inflamatórios não esteroides) e malignidade gástrica.
Na úlcera péptica, a dor abdominal superior é proeminente, localizando-se geralmente no epigástrio. Além disso, sintomas como eructações pós-prandiais, plenitude epigástrica, saciedade precoce, intolerância a alimentos gordurosos, náuseas e ocasional vômito são características adicionais associadas.
A malignidade gastroesofágica, com baixa incidência no hemisfério ocidental, mostra uma evolução da dor inicial leve para intensa e constante com a progressão da doença. Anemia, fadiga e perda de peso são sintomas adicionais que tendem a surgir conforme a condição avança.
A dor biliar, caracterizada por episódios intensos e surdos no quadrante superior direito, epigástrio ou área subesternal, pode irradiar para as costas. Sudorese, náuseas e vômitos acompanham frequentemente essa dor constante.
A dispepsia induzida por drogas, com destaque para AINEs e inibidores seletivos de COX-2, também envolve outras substâncias, como bloqueadores de canais de cálcio, metilxantinas, alendronato, orlistate e suplementos de potássio, entre outros.
Além dessas causas mais comuns, outras condições raras, como doença celíaca e pancreatite crônica, podem apresentar-se exclusivamente com sintomas dispépticos.
Condições infiltrativas gástricas, radiculopatia diabética, distúrbios metabólicos, hepatoma, esteato-hepatite e síndromes de compressão arterial também figuram entre as causas menos frequentes de dispepsia secundária a doença orgânica.
Dispepsia funcional é diagnosticada após a exclusão de outras causas orgânicas de dispepsia. Caracteriza-se pela presença de sintomas como plenitude pós-prandial, saciedade precoce, dor ou queimação epigástrica, sem evidências de doença estrutural subjacente.
Diagnóstico de Dispepsia
A abordagem e a extensão da avaliação diagnóstica para pacientes com dispepsia são determinadas pela apresentação clínica, idade do paciente e presença de sinais de alerta.
Idade do Paciente ≥60 Anos:
- Endoscopia Alta: Realizada para avaliar dispepsia nessa faixa etária.
- Biópsias Gástricas: Obtidas para descartar H. pylori. Se positivo, é administrado tratamento de erradicação.
- Avaliação Adicional: Após o tratamento de H. pylori, a erradicação deve ser avaliada.
Idade do Paciente <60 Anos:
- Teste e Tratamento para H. pylori: Recomendado, com endoscopia alta se os sintomas persistirem após a erradicação bem-sucedida do H. pylori.
- Endoscopia Alta em Pacientes Selecionados: Reservada para aqueles com sinais de alarme.
Sinais de Alarme Incluem:
- Perda de peso clinicamente significativa (>5% do peso corporal habitual ao longo de 6 a 12 meses).
- Sangramento gastrointestinal evidente.
- Pelo menos 1 outro sinal de alarme (tabela 2).
- Sinais de alarme de progressão rápida.
- Perda de peso não intencional.
- Disfagia.
- Odinofagia.
- Anemia por deficiência de ferro inexplicada.
- Vômitos persistentes.
- Massa palpável ou linfadenopatia.
- História familiar de câncer gastrointestinal superior.
Em pacientes com sinais de alarme, a endoscopia alta deve ser realizada precocemente, preferencialmente dentro de duas a quatro semanas. Biópsias gástricas são obtidas para descartar H. pylori, e pacientes com evidências de infecção recebem tratamento de erradicação.
Teste e Tratamento para H. pylori:
- Racionalidade: Baseia-se no reconhecimento do H. pylori como fator etiológico na úlcera péptica.
- Biópsias Mucosas para H. pylori: Realizadas seguindo o protocolo de Sydney, incluindo amostras de diferentes regiões gástricas.
- Teste para H. pylori: Deve ser realizado com um teste para infecção ativa, como o teste respiratório de ureia ou ensaio de antígeno nas fezes. Testes sorológicos não são recomendados devido ao baixo valor preditivo positivo.
Tratamento
Em pacientes negativos para H. pylori ou com sintomas persistentes pós-erradicação, recomenda-se terapia antisecretora com inibidor de bomba de prótons por 4-8 semanas. Para os que permanecem sintomáticos após a erradicação e não respondem ao inibidor de bomba de prótons, consideram-se agentes tricíclicos e pró-cinéticos.
Pacientes com dispepsia persistente, mesmo após tratamento com antidepressivo tricíclico e pró-cinético, devem passar por endoscopia superior com biópsias, se não realizadas.
A investigação adicional para diagnóstico alternativo é seletiva, guiada pelos sintomas. Aqueles com sintomas contínuos de dispepsia por três meses, iniciados pelo menos seis meses antes do diagnóstico e sem evidência de doença estrutural, são diagnosticados e tratados como dispepsia funcional.
De olho na prova!
Não pense que esse assunto fica fora das provas, seja da faculdade, concurso ou residência. Veja um exemplo logo abaixo:
SP – SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – SMS – 2024
Em relação à dispepsia, é correto afirmar:
A) Os inibidores H2 são superiores aos inibidores de bomba de prótons no tratamento da dispepsia ulcerosa.
B) É fundamental a realização de endoscopia digestiva alta em todos os pacientes dispépticos com mais de 40 anos de idade.
C) A associação: amoxicilina + claritromicina + inibidor da bomba de prótons é adequada para a erradicação de Helicobacter pylori.
D) A retirada dos inibidores de bomba de prótons pode ser realizada abruptamente sem risco de rebote ácido, mesmo quando usados em dose alta.
Opção correta: Alternativa “C”
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Referências
George F Longstreth, MD, Brian E Lacy, MD, PhD. Approach to the adult with dyspepsia. UpToDate, 2022. Disponível em: UpToDate