E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Deficiência de G6PD, uma condição hereditária causada pela redução da atividade da enzima glicose-6-fosfato desidrogenase, fundamental para a proteção das hemácias contra o estresse oxidativo.
O Estratégia MED está aqui para descomplicar esse conceito e ajudar você a aprofundar seus conhecimentos, promovendo uma prática clínica cada vez mais eficaz e segura.
Vamos nessa!
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Definição de Deficiência de G6PD
A deficiência de G6PD é um distúrbio hereditário caracterizado pela redução ou ausência da atividade da enzima glicose-6-fosfato desidrogenase, presente no citoplasma de todas as células.
Essa enzima desempenha papel essencial na proteção celular contra espécies reativas de oxigênio, pois participa da produção de substratos capazes de prevenir danos oxidativos. Os eritrócitos são especialmente vulneráveis ao estresse oxidativo por transportarem oxigênio e por não conseguirem renovar suas proteínas após a maturação.
Quando a atividade da G6PD é insuficiente, a célula perde parte de sua capacidade de defesa antioxidante e torna-se suscetível a danos diante de situações que aumentam a produção de radicais livres, como exposição a substâncias oxidantes, certos alimentos e múltiplos medicamentos com potencial oxidativo.
Funcionamento da G6PD
A glicose-6-fosfato desidrogenase desempenha função central na proteção dos eritrócitos contra o dano oxidativo. Ela catalisa a etapa inicial da via das pentoses, oxidando a glicose-6-fosfato e gerando NADPH, que é o único recurso dos eritrócitos para manter o equilíbrio redox.
O NADPH produzido sustenta o sistema do glutation reduzido, fundamental para neutralizar espécies reativas de oxigênio formadas continuamente dentro da hemácia, tanto a partir das reações do oxigênio com a hemoglobina quanto por agentes externos, como drogas e infecções.
O glutation reduzido elimina esses oxidantes com auxílio da glutation peroxidase, convertendo-se em sua forma oxidada, que é regenerada pela glutation redutase em um processo dependente de NADPH.
Assim, a atividade da G6PD mantém níveis adequados de glutation reduzido e preserva as proteínas intracelulares do estresse oxidativo. A enzima nativa é formada por monômeros que, em sua forma ativa, organizam-se como dímeros ligados firmemente ao NADP, com sítios específicos para ligação à glicose-6-fosfato e ao cofator. Quando essa via falha, praticamente todos os episódios de hemólise associados ao metabolismo do glutation decorrem da deficiência de G6PD.
FIsiopatologia da Deficiência de G6PD
A fisiopatologia da deficiência de G6PD está diretamente ligada ao padrão de herança dessa condição, às características moleculares da enzima e ao impacto funcional que suas variantes causam nos eritrócitos. Por ser uma hemácia incapaz de sintetizar novas proteínas após a maturação, qualquer redução da estabilidade ou atividade da G6PD compromete de forma progressiva sua capacidade de defesa contra o estresse oxidativo.
A deficiência segue um padrão de herança ligado ao X. Homens que herdam o alelo mutado são hemizigotos e têm todas as hemácias afetadas, enquanto mulheres apresentam variação na expressão enzimática devido à inativação randômica de um dos cromossomos X durante o desenvolvimento embrionário. Assim, em heterozigotas, a proporção de hemácias normais e deficientes depende do grau de lionização, podendo haver desde formas assintomáticas até quadros tão graves quanto nos homens.
Mais de 200 variantes patogênicas da G6PD já foram descritas, em sua maioria mutações pontuais que alteram a estabilidade ou afinidade da enzima por seus substratos. Como a atividade da G6PD diminui naturalmente com o envelhecimento da hemácia, variantes instáveis aceleram essa queda e produzem populações de eritrócitos progressivamente menos capazes de regenerar glutation reduzido. Quando expostas a agentes oxidantes, essas células acumulam radicais livres, sofrem danos estruturais e podem ser destruídas.
A fragilidade oxidativa resulta de mecanismos como formação de corpos de Heinz, oxidação de proteínas da membrana e perda de deformabilidade, o que favorece tanto hemólise extravascular quanto intravascular. Variantes como G6PD A- afetam principalmente hemácias mais velhas, enquanto variantes severas, como G6PD Mediterranean, comprometem células de todas as idades, tornando-as amplamente vulneráveis ao estresse oxidativo.
Classificação das variantes de G6PD
As variantes da G6PD são tradicionalmente classificadas pela OMS segundo o grau de deficiência enzimática e a gravidade da hemólise causada.
| Classificação | Atividade enzimática | Padrão de hemólise | Equivalência com a classificação anterior da OMS |
| Classe A | Menos de 20 por cento | Hemólise crônica | Similar à antiga Classe I |
| Classe B | Menos de 45 por cento | Hemólise intermitente desencadeada por estresse oxidativo | Abrange as antigas Classes II e III |
| Classe C | Entre 60 e 150 por cento | Sem hemólise | Equivalente à antiga Classe IV |
| Classe U | Entre 45 e 60 por cento | Indeterminado; necessita acompanhamento | Não tinha equivalente direto; grupo novo proposto |
Manifestações clínicas da deficiência de G6PD
As manifestações clínicas variam amplamente, dependendo do grau de deficiência enzimática e da variante genética envolvida.
Indivíduos assintomáticos
A maior parte das pessoas com deficiência de G6PD permanece sem sintomas em condições basais. Nesses casos, não há anemia nem sinais evidentes de hemólise. Mulheres heterozigotas costumam ser assintomáticas, mas a inativação desigual do X pode fazê-las apresentar manifestações semelhantes às dos homens.
Anemia hemolítica aguda
É a apresentação mais comum. Ocorre após exposição a agentes oxidantes, como medicamentos, infecções ou ingestão de favas. O quadro se instala rapidamente, com icterícia, palidez, urina escura e queda abrupta da hemoglobina. A gravidade varia desde formas leves e autolimitadas até anemia grave com risco de insuficiência renal. O esfregaço sanguíneo mostra achados típicos, como células em mordida e corpos de Heinz.
Icterícia neonatal
Recém-nascidos com deficiência de G6PD têm risco aumentado de desenvolver icterícia significativa, geralmente entre o segundo e o terceiro dia de vida. A anemia costuma ser discreta, mas a hiperbilirrubinemia pode ser intensa, podendo levar a kernicterus se não tratada. Fatores ambientais e genéticos adicionais podem agravar o quadro.
Anemia hemolítica crônica
Rara e associada a variantes muito graves. Nesses casos, há hemólise persistente mesmo sem exposição oxidante, com anemia leve a moderada e reticulocitose constante. Episódios infecciosos ou ingestão de substâncias oxidantes podem exacerbar o quadro.
Outras associações
Em situações excepcionais, a deficiência severa pode comprometer a função de neutrófilos. Além disso, a maior renovação das hemácias reduz os valores de hemoglobina glicada, o que pode subestimar o controle glicêmico em indivíduos com diabetes.
Diagnóstico da Deficiência de G6PD
O diagnóstico da deficiência de G6PD envolve avaliação clínica e exames laboratoriais, variando conforme a idade e o contexto clínico. Em recém-nascidos, ele está especialmente relacionado à investigação de icterícia precoce ou intensa.
Diagnóstico em recém-nascidos
A investigação geralmente tem início diante de icterícia significativa nos primeiros dias de vida. A avaliação é feita pela observação da coloração da pele em ambiente bem iluminado e confirmada pela dosagem de:
- Bilirrubina total sérica (TSB)
- Bilirrubina transcutânea (TcB)
Os valores são interpretados com auxílio de um nomograma específico por hora de vida, permitindo estratificação de risco.
Teste do pezinho no Brasil
No Brasil, o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) já dispõe da estrutura necessária para a triagem neonatal, e o SUS oferece o chamado teste do pezinho como exame de triagem inicial.
A proposta analisada pela CONITEC sugeria incorporar a dosagem de G6PD ao painel oficial do teste do pezinho, com o objetivo de identificar precocemente recém-nascidos com risco de icterícia grave e kernicterus, prevenindo óbito e sequelas neurológicas irreversíveis.
O relatório destaca que:
- A deficiência de G6PD é uma das principais causas de icterícia precoce, com risco de anemia hemolítica grave e kernicterus.
- Estima-se que 6 milhões de brasileiros tenham deficiência e que 1% dos recém-nascidos apresentem icterícia neonatal associada à G6PD.
- Há variação regional na prevalência, com taxas de 1% no Sul e até 9% na Amazônia, segundo estudos avaliados pela CONITEC.
Apesar disso, a recomendação inicial da CONITEC, em 2018, foi desfavorável à incorporação imediata, por três motivos principais:
- A coleta do teste do pezinho ocorre após 48 horas de vida, mas a icterícia por G6PD pode surgir antes de 24 horas, o que limita o impacto da triagem precoce.
- Faltam estudos de longo prazo no Brasil que avaliem claramente os benefícios populacionais da triagem.
- A maioria dos estudos analisados carece de dados sobre desfechos e condutas subsequentes.
Ainda assim, o documento reconhece que a G6PD é uma condição de impacto significativo na morbimortalidade neonatal e que a discussão sobre sua inclusão permanece aberta.
Métodos de testagem
Além da triagem neonatal, podem ser usados:
- Teste fluorescente rápido, que identifica formação de NADPH;
- Dosagem quantitativa por espectrofotometria, utilizada para confirmação diagnóstica.
Diagnóstico em crianças maiores e adultos
Quando a investigação ocorre fora do período neonatal, geralmente é motivada por episódios de hemólise, especialmente após exposição a agentes oxidantes.
Avaliação clínica
Deve incluir:
- Histórico de novos medicamentos;
- Ingestão de alimentos desencadeadores;
- Infecções recentes;
- Histórico familiar de anemia hemolítica.
Exames laboratoriais essenciais
- Hemograma
- Bilirrubinas
- Reticulócitos
- Transaminases
- LDH
Esfregaço de sangue periférico
Pode revelar:
- Esquizócitos;
- Corpos de Heinz.
Confirmação diagnóstica
A confirmação é feita pela dosagem quantitativa da atividade enzimática da G6PD.
Idealmente, essa coleta deve ocorrer após o fim da crise hemolítica, pois a presença de reticulócitos jovens pode falsamente normalizar a atividade da enzima.
Tratamento da Deficiência de G6PD
O tratamento da deficiência de G6PD depende da faixa etária e da gravidade das manifestações, com foco principal na prevenção e no manejo das crises hemolíticas e da hiperbilirrubinemia.
Tratamento em recém-nascidos
Nos neonatos, o objetivo central é controlar a icterícia e evitar o kernicterus. As principais medidas incluem:
- Fototerapia, indicada conforme diretrizes específicas baseadas nos níveis de bilirrubina e na idade em horas do bebê.
- Transfusão de exsanguíneo-transfusão (exchange transfusion) em situações graves, quando os níveis de bilirrubina atingem valores muito elevados ou quando a icterícia não responde adequadamente à fototerapia.
Essas intervenções atuam diretamente na redução da bilirrubina sérica, prevenindo danos neurológicos permanentes.
Tratamento em pacientes mais velhos
Em crianças maiores e adultos, a conduta é guiada principalmente pelo quadro clínico e pela intensidade da hemólise.
- Quadros leves podem ser manejados com suporte clínico e observação.
- Interrupção imediata e evitação permanente do agente desencadeante, como medicamentos, alimentos ou substâncias oxidantes.
- Tratamento de infecções associadas, já que o estresse infeccioso pode precipitar hemólise.
- Transfusão sanguínea em casos de hemólise intensa com anemia significativa ou instabilidade hemodinâmica.
De forma geral, não há tratamento curativo para a deficiência de G6PD. A abordagem se concentra na prevenção de novas crises, reconhecimento precoce de sinais de hemólise e manejo rápido das complicações.
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Referências
Richardson SR, O’Malley GF. Glucose-6-Phosphate Dehydrogenase Deficiency. [Updated 2022 Sep 26]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK470315/
Elizabeth Selvin, PhD, MPH. Measurements of chronic glycemia in diabetes mellitus. UpToDate, 2025. Disponível em: UpToDate



