E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Fístula Aortoentérica, uma condição rara, mas extremamente grave, caracterizada por uma comunicação anormal entre a aorta e o trato gastrointestinal, o que pode levar a quadros de sangramento digestivo potencialmente fatais.
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Vamos nessa!
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Definição de Fístula Aortoentérica
A fístula aortoentérica é uma comunicação anormal entre a aorta e o trato gastrointestinal, que pode resultar em hemorragia grave e potencialmente fatal. Essa condição pode se manifestar de forma primária, quando ocorre espontaneamente a partir da aorta nativa, geralmente associada a aneurismas ou processos inflamatórios.
A forma secundária, mais comum, está relacionada a intervenções cirúrgicas prévias na aorta, especialmente com o uso de enxertos sintéticos. Com o tempo, esse material pode erodir estruturas adjacentes, como o intestino, levando à formação da fístula.
A apresentação clínica é variável, mas frequentemente inclui sinais de sangramento gastrointestinal, como hematêmese ou melena. Em alguns casos, o sangramento ocorre de forma abrupta e intensa, podendo evoluir rapidamente para choque hemorrágico. Trata-se de uma condição que exige reconhecimento imediato, pois a evolução costuma ser rápida e o prognóstico, reservado.
Etiologia da Fístula Aortoentérica
As fístulas aortoentéricas (FAEs) podem ser classificadas em primárias ou secundárias. As FAEs primárias ocorrem de forma espontânea, geralmente devido à combinação de forças mecânicas de fricção direta entre a aorta e o trato gastrointestinal, associadas à inflamação da parede aórtica.
Já as FAEs secundárias são mais comuns e estão associadas a intervenções cirúrgicas prévias na aorta, como procedimentos abertos ou endovasculares que envolvem o uso de enxertos sintéticos. Esses enxertos, com o tempo, podem erodir o intestino adjacente, formando a fístula. O local mais frequentemente acometido é o duodeno, especialmente os segmentos terceiro e quarto, onde há contato direto com a aorta.
As fístulas aortoentéricas são condições raras, mas sua incidência aumentou com a maior realização de cirurgias para correção de doenças da aorta. Atualmente, as FAEs secundárias são mais frequentes que as primárias. Estima-se que ocorrem em 0,36% a 1,6% dos pacientes submetidos a tratamento cirúrgico da aorta.
A média de idade para o desenvolvimento da FAE é de 61 anos, sendo mais comum em homens, refletindo a maior prevalência de aneurismas de aorta abdominal e seus reparos nesse grupo. A razão entre homens e mulheres é de 3:1 nas FAEs primárias e de 8:1 nas secundárias.
Classificação de Fístula Aortoentérica
A fístula aortoentérica (FAE) é classificada em dois tipos principais: primária e secundária.
A fístula aortoentérica primária (FAEP) surge espontaneamente, sem histórico de cirurgia aórtica prévia. É geralmente causada por aneurismas da aorta, mas também pode estar relacionada a infecções (como tuberculose ou sífilis), neoplasias, radioterapia ou corpos estranhos. Mais de 75% dos casos envolvem o duodeno, especialmente os segmentos terceiro e quarto, pela sua proximidade com a aorta.
Já a fístula aortoentérica secundária (FAES) ocorre como complicação de procedimentos cirúrgicos ou endovasculares prévios, como implante de enxertos sintéticos para correção de doenças da aorta. O mecanismo pode envolver erosão do enxerto na parede intestinal devido à pulsação constante, inflamação local ou falhas técnicas na cirurgia. Assim como nas FAEPs, o duodeno é o local mais frequentemente acometido, embora outras regiões do trato gastrointestinal possam estar envolvidas.
Fisiopatologia da Fístula Aortoentérica
A fisiopatologia da fístula aortoentérica (FAE) envolve a formação de uma comunicação anormal entre a aorta (ou árvore aortoilíaca) e o trato gastrointestinal, decorrente de processos mecânicos e inflamatórios.
Nas fístulas primárias, o mecanismo principal é a fricção repetitiva entre a aorta, geralmente aneurismática, e o intestino adjacente, especialmente o duodeno. A pulsação cardíaca contínua e os movimentos peristálticos promovem o afilamento progressivo das paredes vasculares e intestinais até que ocorra a perfuração e a comunicação direta. Fatores como corpos estranhos, tumores e processos infecciosos, incluindo aneurismas micóticos, sepse, sífilis, tuberculose e infecção por salmonella, intensificam a inflamação local, favorecendo a erosão e o surgimento da fístula.
Nas fístulas secundárias, que ocorrem após procedimentos cirúrgicos ou endovasculares, como o implante de endopróteses, o atrito entre o enxerto e a alça intestinal próxima pode provocar erosão da parede intestinal. A ausência de uma barreira protetora de tecido mole entre as estruturas facilita esse desgaste. Além disso, a translocação bacteriana do trato entérico para a corrente sanguínea pode levar à infecção do enxerto, contribuindo para a formação da fístula, sepse e deterioração rápida do quadro clínico. Embora geralmente ocorra em um único ponto, há relatos de fístulas múltiplas simultâneas.
Manifestações clínicas da Fístula Aortoentérica
As manifestações clínicas da fístula aortoentérica (FAE) variam conforme a localização, o tipo da fístula e a presença ou não de sangramento, podendo incluir desde sintomas sutis até quadros agudos e fatais.
Sangramento gastrointestinal
O sangramento é a manifestação mais comum da FAE, especialmente nas fístulas secundárias (FAES). Pode se apresentar de forma variável, incluindo:
- Sangramento leve ou intermitente, como anemia ou sangramento sentinela (herald bleed);
- Hemorragia maciça e abrupta, com risco iminente de exsanguinação, mais frequente nas FAES anastomóticas;
- Hematemese e melena, presentes em 32% a 78% dos casos de FAE primária (FAEP).
Apesar de ser comum, o sangramento nem sempre está presente. Estima-se que cerca de um terço das FAEs envolvendo o duodeno e dois terços das que acometem o intestino delgado ou o cólon não apresentam sangramento evidente.
Sintomas sistêmicos ou inespecíficos
Em casos sem sangramento ou com erosões incompletas, outros sinais podem sugerir a presença de uma FAE, como:
- Mal-estar geral;
- Perda de peso;
- Febre persistente ou sepse;
- Isquemia de membros inferiores, por trombose do enxerto;
- Sintomas vagos abdominais.
A presença de infecção do enxerto é uma preocupação importante, especialmente nos casos de erosão sem sangramento. Nesses casos, o médico deve presumir que o enxerto está infectado, uma vez que a infecção costuma ser a base da erosão e progressão da fístula.
Essas manifestações, muitas vezes sutis ou progressivas, exigem alto grau de suspeição clínica, especialmente em pacientes com histórico de cirurgia aórtica ou portadores de enxertos vasculares.
Diagnóstico de Fístula Aortoentérica
O diagnóstico da fístula aortoentérica (FAE) é desafiador devido à sua raridade e à variabilidade de manifestações clínicas.
Dificuldades no diagnóstico
- FAE primária (PAEF) é frequentemente diagnosticada durante cirurgia de emergência, sendo identificada em sala operatória em cerca de dois terços dos casos.
- FAE secundária (SAEF) é mais comumente diagnosticada no pré-operatório, mas ainda depende de um alto grau de suspeição clínica, especialmente em pacientes com sangramento gastrointestinal e histórico de cirurgia aórtica.
Apresentações clínicas que orientam o diagnóstico
- O sangramento gastrointestinal (especialmente o “herald bleed”, ou sangramento sentinela) é a manifestação mais comum.
- A tríade clássica (sangramento GI, dor abdominal e massa pulsátil) ocorre em apenas 6–12% dos casos.
- Em alguns casos, a FAE pode se apresentar sem sangramento, manifestando-se por febre, perda de peso ou sinais de infecção do enxerto.
Exames diagnósticos
- Endoscopia digestiva alta
- Útil para casos estáveis com sangramento, mas tem sensibilidade limitada (~50%);
- Pode visualizar sangue ou coágulos no duodeno distal, porém há risco de provocar sangramento massivo se houver descolamento de trombo.
- Angiotomografia (CT angiografia)
- É o exame de imagem de primeira escolha em pacientes estáveis com suspeita de FAE.
- Achados sugestivos incluem:
- Gás ectópico próximo à aorta;
- Espessamento da parede intestinal;
- Extravasamento de contraste;
- Obliteração do plano de gordura entre a aorta e o intestino.
- Ultrassonografia
- Pode detectar aneurisma, mas não visualiza a fístula devido à presença de gás.
- Cintilografia e PET-CT
- Usados como exames complementares, principalmente para detectar infecção de enxerto em casos sem sangramento;
- Sensibilidade variável e alta taxa de falso-positivos.
Tratamento da Fístula Aortoentérica
O tratamento da fístula aortoentérica (FAE) exige diagnóstico rápido e intervenção cirúrgica agressiva. Inicialmente, deve-se estabilizar hemodinamicamente o paciente e iniciar ressuscitação com transfusão em proporção 1:1:1 (hemácias, plaquetas e plasma fresco congelado), além da reversão de anticoagulantes.
Coletas de hemoculturas e início de antibióticos de amplo espectro são essenciais, com ajuste após identificação do agente. Se Clostridium septicum for isolado, é necessária investigação de neoplasia colônica.
A abordagem cirúrgica pode ser aberta ou endovascular (EVAR). A cirurgia aberta permite debridamento de tecidos infectados, reparo do trato intestinal e remoção de enxerto infectado, o que reduz o risco de infecção tardia (19% vs. 42% com EVAR). Porém, apresenta maior mortalidade hospitalar (33,9% vs. 7% com EVAR).
O EVAR é vantajoso em pacientes com múltiplas cirurgias prévias ou sem condições clínicas para cirurgia aberta. Contudo, o enxerto é implantado em campo contaminado, o que pode gerar infecções crônicas, febre recorrente e necessidade de antibióticos prolongados.
Em FAEs primárias sem infecção, o EVAR pode ser preferido. Em casos secundários ou com infecção, o EVAR pode ser uma ponte para cirurgia aberta futura. Pacientes tratados endovascularmente podem necessitar de antibióticos por tempo prolongado, drenagem de abscessos ou cirurgia corretiva definitiva.
Na prevenção, recomenda-se ultrassonografia da aorta para homens de 65 a 75 anos que já fumaram, conforme o USPSTF. Durante cirurgias de aneurisma aórtico, deve-se evitar contato direto do enxerto com o duodeno, utilizando tecido interposto, como retalho omental.
Pacientes que sobreviverem à correção da FAE devem manter seguimento com exames periódicos da aorta ao longo da vida.
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Referências
Ahsan Ali, MD, FACS. Aortoenteric fistula: Recognition and management. UpToDate, 2025. Disponível em: UpToDate
Dorosh J, Lin JC. Aortoenteric Fistula. [Updated 2022 Sep 26]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK567729/