E aí, doc! Vamos explorar mais um tema essencial? Hoje o foco é a Intoxicação por Salicilato, uma condição resultante do uso excessivo de ácido acetilsalicílico e outros derivados salicílicos, que pode causar alterações metabólicas graves, como acidose metabólica e alcalose respiratória.
O Estratégia MED está aqui para descomplicar esse conceito e ajudar você a aprofundar seus conhecimentos, promovendo uma prática clínica cada vez mais eficaz e segura.
Vamos nessa!
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Definição de Intoxicação por salicilatos
Os salicilatos são compostos derivados do ácido salicílico e amplamente utilizados por suas propriedades analgésicas, antipiréticas e antitrombóticas. O principal representante desse grupo é o ácido acetilsalicílico, conhecido como aspirina ou AAS, um dos medicamentos mais antigos ainda em uso clínico.
Apesar de seu uso ter diminuído em algumas populações devido à associação com a síndrome de Reye e à introdução de outros anti-inflamatórios não esteroides, os salicilatos continuam sendo empregados principalmente na prevenção de eventos cardiovasculares e cerebrovasculares.
Essas substâncias podem ser encontradas em diversas formulações, isoladas ou associadas a outros medicamentos, como narcóticos, anti-histamínicos e anticolinérgicos, o que pode dificultar o reconhecimento e o manejo de casos de intoxicação.
A toxicidade por salicilatos, também chamada de salicilismo, pode ocorrer tanto por ingestão aguda quanto por uso crônico e representa uma emergência médica caracterizada por graves alterações metabólicas e acidobásicas que exigem tratamento rápido e atuação integrada de uma equipe multiprofissional.
Fisiopatologia da Intoxicação por salicilatos
Inicialmente, os salicilatos estimulam diretamente o centro respiratório localizado na medula cerebral, levando à hiperventilação e consequente alcalose respiratória. À medida que o metabolismo do salicilato progride, ocorre o desacoplamento da fosforilação oxidativa nas mitocôndrias, o que reduz a produção eficiente de ATP e força as células a recorrerem à glicólise anaeróbica. Esse processo aumenta a produção de ácido lático, contribuindo para o desenvolvimento de acidose metabólica.
Com a progressão da intoxicação, a combinação de alcalose respiratória inicial e acidose metabólica secundária gera um distúrbio ácido-base misto. O organismo tenta compensar por meio de hiperventilação, mas, com o tempo, a fadiga respiratória impede essa compensação, e a acidose metabólica passa a predominar, resultando em instabilidade hemodinâmica e dano a órgãos-alvo, como cérebro, rins e fígado.
A absorção dos salicilatos ocorre principalmente no estômago e intestino delgado, sendo favorecida por ambientes ácidos. Fatores como formulação de liberação prolongada, presença de alimentos no estômago ou formação de bezoares podem retardar a absorção. Além disso, o salicilato pode causar espasmo do esfíncter pilórico, prolongando o tempo de permanência gástrica e aumentando a absorção.
Os salicilatos são metabolizados no fígado, com eliminação inicial por cinética de primeira ordem. Quando os níveis séricos se elevam, essas vias tornam-se saturadas, passando a uma eliminação de ordem zero, o que significa que a depuração ocorre a uma taxa constante e mais lenta. Em pacientes com doença hepática ou renal, a eliminação é ainda mais comprometida, favorecendo o acúmulo e agravando a toxicidade.
Embora preparações tópicas de salicilatos possam ser absorvidas pela pele, geralmente não atingem níveis tóxicos no sangue. No entanto, em crianças ou em indivíduos com lesões cutâneas extensas, como queimaduras ou psoríase, há potencial risco de absorção excessiva e toxicidade sistêmica.
Manifestações clínicas da Intoxicação por salicilatos
A intoxicação por salicilatos provoca um quadro clínico amplo e potencialmente grave, envolvendo alterações metabólicas, neurológicas, respiratórias e cardiovasculares. A gravidade depende da dose, formulação, coingestantes e tempo de exposição.
Sinais iniciais
Os primeiros sintomas aparecem entre 1 e 2 horas após a ingestão aguda e incluem zumbido (tinnitus), náuseas, vômitos, taquipneia e taquicardia. Esses sinais refletem a estimulação do centro respiratório e o início das alterações metabólicas.
Alterações respiratórias e metabólicas
A hiperventilação leva a uma alcalose respiratória precoce, seguida por acidose metabólica com aumento do anion gap, causada pelo acúmulo de ácido lático e cetoácidos. A maioria dos pacientes apresenta um distúrbio ácido-base misto, enquanto crianças podem desenvolver acidose isolada. Com a progressão e fadiga respiratória, pode surgir acidose respiratória.
Sintomas gastrointestinais e hidroeletrolíticos
São comuns náuseas, vômitos, dor abdominal e, em casos graves, sangramento gastrintestinal. O salicilato retarda o esvaziamento gástrico e pode causar gastrite hemorrágica. A intoxicação leva a grande perda de líquidos (até 4 a 6 L/m²) por vômitos, sudorese, hiperventilação e diurese osmótica, resultando em hipovolemia e depleção de potássio, além de distúrbios eletrolíticos como hiponatremia, hipocalemia e hipomagnesemia.
Alterações neurológicas
O comprometimento do sistema nervoso central caracteriza intoxicação grave e pode incluir agitação, confusão, alucinações, convulsões e coma. A toxicidade resulta de efeito direto no SNC, neuroglicopenia e edema cerebral, agravados pela acidose.
Complicações pulmonares e cardiovasculares
O edema pulmonar não cardiogênico é sinal de intoxicação severa, mais comum em idosos e em intoxicações crônicas, e resulta do aumento da permeabilidade vascular pulmonar. No sistema cardiovascular, a taquicardia sinusal é comum, podendo evoluir para arritmias ventriculares ou assistolia em casos críticos.
Outras alterações
Pode haver hipertermia pelo aumento da produção de calor, alterações no metabolismo da glicose (hiper ou hipoglicemia), leucocitose, disfunção plaquetária, prolongamento do TP/INR e lesão hepática reversível. A vasodilatação sistêmica pode levar a um quadro semelhante ao choque distributivo.
Diagnóstico da Intoxicação por salicilatos
A anamnese deve investigar quantidade, tipo e tempo da ingestão, além de verificar se foi intencional ou acidental. É essencial questionar o uso de outros produtos com salicilatos, como Pepto-Bismol, Kaopectate, Doan’s ou óleo de wintergreen.
Exames laboratoriais
Devem ser solicitados:
- Dosagem sérica de salicilato;
- Eletrólitos, glicose, creatinina, ureia e lactato;
- Gasometria arterial ou venosa;
- Urina com pH;
- Coagulograma, hemograma e enzimas hepáticas;
- Teste de gravidez em mulheres em idade fértil;
- Dosagem de acetaminofeno, devido à possível coingestão.
Interpretação dos níveis séricos
A toxicidade geralmente ocorre com níveis acima de 30 a 50 mg/dL, enquanto o intervalo terapêutico é de 15 a 30 mg/dL. A dosagem deve ser repetida a cada 2 a 4 horas, pois a absorção pode ser retardada, especialmente em formulações de liberação prolongada.
A queda dos níveis séricos com piora clínica indica acúmulo tecidual e não melhora. Além disso, o nível sérico pode demorar até 6 horas para se elevar após a ingestão.
Exames complementares
Outros exames podem ajudar na avaliação:
- ECG para detectar arritmias e distúrbios eletrolíticos;
- Radiografia de tórax em casos de suspeita de edema pulmonar;
- Tomografia de crânio em pacientes com alteração do nível de consciência.
Confirmação diagnóstica e formas clínicas
O diagnóstico é confirmado pela presença de sinais e sintomas compatíveis (como vômitos, taquipneia, tinnitus e acidose metabólica com alcalose respiratória) associados a níveis séricos acima de 30 mg/dL.
Deve-se diferenciar intoxicação aguda, resultante de uma grande ingestão única, da crônica, que ocorre com o uso contínuo de doses elevadas, mais comum em idosos e crianças pequenas, podendo manifestar-se com níveis séricos menores.
Importância do reconhecimento precoce
O atraso no diagnóstico está relacionado a maior mortalidade, principalmente em crianças e idosos. Por isso, o tratamento deve ser iniciado com base no quadro clínico e no estado ácido-base, sem esperar a confirmação laboratorial completa.
Tratamento da Intoxicação por salicilatos
O tratamento da intoxicação por salicilatos tem como objetivos principais corrigir os distúrbios metabólicos, reduzir a absorção e promover a eliminação do salicilato, além de prevenir complicações sistêmicas. A abordagem deve ser rápida e individualizada conforme a gravidade do quadro.
Reanimação volêmica e correção metabólica
Os pacientes geralmente apresentam desidratação e depleção volêmica devido à hiperventilação, febre e aumento do metabolismo. A reposição de fluidos deve ser feita com soro glicosado a 5% (D5) adicionado a três ampolas de bicarbonato de sódio.
O dextrose corrige a hipoglicemia do sistema nervoso central (SNC), enquanto o bicarbonato de sódio ajuda a corrigir a acidose metabólica e a promover a alcalinização urinária, aumentando a excreção renal de salicilatos.
A meta de diurese deve ser de 2 a 3 mL/kg/h, e o potássio deve ser reposto se houver hipocalemia, pois sua deficiência dificulta a alcalinização urinária.
Suporte ventilatório
Em casos graves, o paciente pode evoluir com fadiga respiratória e incapacidade de manter a compensação ventilatória da acidose metabólica. Embora a ventilação mecânica não seja ideal, pode ser necessária.
Durante a intubação, recomenda-se administrar um bônus de bicarbonato de sódio (1 a 2 mEq/kg) para atenuar a acidose até que a hiperventilação seja restabelecida pelo ventilador. Após a intubação, é importante providenciar hemodiálise de emergência, pois o suporte ventilatório por si só não corrige adequadamente a acidose e pode agravar a toxicidade.
Redução dos níveis séricos de salicilato
Após a estabilização inicial, devem-se adotar medidas para diminuir a concentração sérica da droga:
- Carvão ativado pode ser administrado para reduzir a absorção, embora não haja evidência de benefício em mortalidade;
- Lavagem gástrica pode ser considerada em ingestões agudas recentes de formulações de liberação entérica, desde que não haja risco de aspiração;
- Irrigação intestinal total não é recomendada, pois não reduz os níveis séricos e pode até aumentar a absorção.
Hemodiálise
A hemodiálise é o método mais eficaz para remover o salicilato e corrigir rapidamente a acidose metabólica e outras complicações.
As indicações incluem:
- Acidose grave ou hipotensão persistente apesar da reposição volêmica;
- Níveis séricos de salicilato >100 mg/dL;
- Necessidade de ventilação mecânica;
- Presença de lesão em órgãos-alvo, como edema cerebral, edema pulmonar, insuficiência renal, convulsões ou rabdomiólise.
A diálise remove não apenas o salicilato, mas também o lactato, melhorando o estado ácido-base.
Controle de convulsões e hipoglicemia
Convulsões devem ser tratadas com benzodiazepínicos, e a administração de glicose deve ser feita mesmo com níveis séricos normais, já que pode haver hipoglicemia cerebral relativa. Após uma crise convulsiva, a acidose tende a piorar, podendo ser necessário um bônus adicional de bicarbonato.
Alta hospitalar e monitoramento
Pacientes com ingestão leve e sintomas mínimos podem receber alta se apresentarem níveis decrescentes de salicilato e ausência de distúrbios metabólicos.
Por outro lado, aqueles com níveis ascendentes ou acidose progressiva devem ser internados em unidade de terapia intensiva (UTI) para monitorização contínua e possível diálise.
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Referências
A Karl Barnett, MD, FACEPEdward W Boyer, MD, PhD. Salicylate (aspirin) poisoning: Clinical manifestations and evaluation. UpToDate, 2025. Disponível em: UpToDate
Runde TJ, Nappe TM. Salicylates Toxicity. [Updated 2023 Jul 10]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK499879/



