Olá, querido doutor e doutora! A cannabis medicinal tem sido progressivamente incorporada ao debate clínico e regulatório no Brasil, impulsionada por demandas sociais, avanços normativos e evidências emergentes para algumas indicações específicas. Entretanto, seu uso na prática médica ainda envolve incertezas quanto à segurança, eficácia e padronização dos produtos disponíveis.
A introdução de derivados de cannabis no arsenal terapêutico ampliou as possibilidades de manejo para condições de difícil controle clínico.
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Conceito
A cannabis medicinal refere-se ao uso terapêutico de derivados da planta Cannabis sativa com objetivo de aliviar sintomas ou auxiliar no tratamento de condições clínicas específicas. Esses derivados contêm substâncias ativas chamadas canabinoides, sendo os mais conhecidos o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). Cada um desses compostos apresenta efeitos farmacológicos distintos e seu uso deve ser orientado conforme o perfil clínico do paciente e a indicação pretendida.
Embora muitos produtos à base de cannabis sejam comercializados como medicamentos, apenas uma pequena parcela possui registro sanitário e comprovação científica robusta. A maioria dos produtos disponíveis no Brasil enquadra-se como itens autorizados para uso mediante prescrição médica, mas sem registro como medicamentos junto à Anvisa.
O termo “cannabis medicinal” abrange diferentes formas farmacêuticas e composições, que podem variar desde extratos integrais (full spectrum) até canabinoides isolados, comercializados como óleos, cápsulas, loções, pomadas, sprays e outros veículos de administração. O uso terapêutico da cannabis deve ser diferenciado do uso recreativo, e sua prescrição exige avaliação criteriosa baseada em evidências clínicas disponíveis e em diretrizes regulatórias vigentes no país.
Mecanismo de ação e farmacologia dos canabinoides
Os efeitos terapêuticos da cannabis derivam principalmente da interação de seus componentes com o sistema endocanabinoide, um conjunto de receptores, ligantes e enzimas que modulam diversas funções fisiológicas. Os principais receptores envolvidos são o CB1, predominante no sistema nervoso central, e o CB2, localizado principalmente em tecidos periféricos e células do sistema imune.
O tetrahidrocanabinol (THC) é o composto psicoativo da planta e atua como agonista parcial dos receptores CB1, produzindo efeitos como analgesia, relaxamento muscular, alteração da percepção sensorial e, em alguns casos, euforia ou sintomas psiquiátricos. Já o canabidiol (CBD) possui baixa afinidade direta pelos receptores canabinoides, mas atua modulando sua atividade de forma indireta, além de interagir com receptores serotoninérgicos (5-HT1A), vaniloides (TRPV1) e outros canais iônicos, o que pode explicar seus efeitos anticonvulsivantes, ansiolíticos e anti-inflamatórios.
O sistema endocanabinoide atua como um regulador homeostático em processos como controle da dor, regulação do apetite, memória, sono, resposta imunológica e humor. A estimulação ou modulação desses receptores por canabinoides exógenos pode gerar benefícios terapêuticos, mas também efeitos adversos, dependendo da dose, da formulação e da susceptibilidade individual do paciente.
A farmacocinética dos canabinoides é variável conforme a via de administração. O uso oral apresenta baixa biodisponibilidade, devido ao metabolismo de primeira passagem hepática, enquanto formas sublinguais ou inalatórias promovem absorção mais rápida e efeitos mais imediatos. O metabolismo hepático é mediado principalmente pelo sistema CYP450, o que implica em potenciais interações medicamentosas relevantes.
Principais compostos utilizados e suas diferenças
Os derivados medicinais da Cannabis sativa abrangem diferentes canabinoides com propriedades farmacológicas distintas. Os dois compostos mais estudados são o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), embora outros, como o nabiximol e o dronabinol, também tenham aplicação clínica.
O CBD é um composto não psicoativo que atua de forma indireta nos receptores do sistema endocanabinoide. Ele é reconhecido por seus efeitos anticonvulsivantes, ansiolíticos e anti-inflamatórios, sendo o principal componente em formulações voltadas para epilepsia refratária, especialmente em pediatria. Possui perfil de segurança relativamente favorável, mesmo em uso prolongado, embora possa causar efeitos adversos como sedação, alterações gastrointestinais e elevação de transaminases, sobretudo em uso concomitante com anticonvulsivantes.
O THC, por outro lado, é o principal agente psicoativo da planta. Seu uso medicinal está relacionado ao controle de náuseas, estímulo do apetite, analgesia e espasticidade, especialmente em contextos paliativos. Por ser agonista direto dos receptores CB1, pode induzir efeitos como euforia, alteração da cognição, ansiedade e, em casos susceptíveis, sintomas psicóticos.
O nabiximol é uma formulação farmacêutica padronizada que combina CBD e THC em proporção fixa, sendo utilizada para manejo de espasticidade e dor neuropática em esclerose múltipla, com evidência clínica moderada. Seu uso exige prescrição controlada e acompanhamento médico rigoroso.
Já o dronabinol é um canabinoide sintético que mimetiza os efeitos do THC, aprovado para tratamento de náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia e anorexia associada à perda de peso em pacientes com HIV/AIDS.
Outros compostos da cannabis, como CBN (canabinol) e CBG (canabigerol), ainda estão em fase exploratória e não possuem indicações consolidadas. A composição dos produtos disponíveis no mercado pode variar amplamente entre extratos integrais (full spectrum), extratos com remoção de THC (broad spectrum) e canabinoides isolados, o que impacta diretamente na eficácia, segurança e indicação clínica.
Indicações clínicas
Apesar da ampla divulgação de benefícios terapêuticos atribuídos à cannabis medicinal, poucas indicações contam com evidência científica sólida que justifique sua prescrição na prática clínica. O uso deve ser fundamentado em estudos controlados e revisões sistemáticas, evitando a associação indiscriminada da cannabis como solução para múltiplas enfermidades.
A epilepsia refratária, especialmente em crianças com síndromes como Dravet e Lennox-Gastaut, é a condição com maior respaldo científico para uso do canabidiol (CBD). Nesses casos, o CBD demonstrou redução significativa na frequência e na intensidade das crises convulsivas, com nível elevado de evidência.
Outras condições que apresentam evidência moderada para o uso de derivados canabinoides incluem:
- Espasticidade associada à esclerose múltipla – com uso de nabiximol;
- Dor crônica – especialmente neuropática, com resposta parcial ao uso de THC, CBD ou suas combinações;
- Distúrbios do sono e sintomas depressivos, em determinados contextos clínicos;
- Perda de apetite e náuseas induzidas por quimioterapia – especialmente com o uso de dronabinol ou nabilona;
- Síndrome de Tourette – com evidência moderada para redução de tiques motores.
Já em condições como transtornos de ansiedade, autismo, TDAH, esquizofrenia, Alzheimer, Parkinson, fibromialgia e TEPT, a maioria dos estudos é de baixa qualidade metodológica, com resultados conflitantes ou inconclusivos. Nestes casos, o uso clínico deve ser avaliado com extrema cautela e restrito a situações refratárias a terapias convencionais.
A prática médica deve estar alinhada ao princípio da medicina baseada em evidências, garantindo que o uso da cannabis medicinal ocorra somente quando os benefícios forem comprovadamente superiores aos riscos, e em conformidade com a regulamentação vigente.
Efeitos adversos e segurança
A avaliação da segurança no uso da cannabis medicinal é uma etapa indispensável para sua prescrição clínica. Os efeitos adversos variam de acordo com o tipo de canabinoide utilizado, a dose, a via de administração e a sensibilidade individual do paciente.
O tetrahidrocanabinol (THC) está associado a maior risco de efeitos adversos, principalmente de natureza neuropsiquiátrica. São descritos:
- Ansiedade, pânico, disforia e alterações do humor;
- Déficits de atenção, memória e cognição, especialmente em uso crônico;
- Potencial para induzir psicoses ou sintomas psicóticos em indivíduos predispostos;
- Sinais de síndrome de dependência, com abstinência leve a moderada em usuários regulares.
Eventos cardiovasculares (taquicardia, hipotensão postural), gastrointestinais (náuseas, diarreia), alterações hepáticas e efeitos imunomodulatórios também foram relatados, com variações conforme a formulação.
Já o canabidiol (CBD) possui um perfil mais tolerável, porém não isento de riscos. Os principais efeitos adversos incluem:
- Sonolência e sedação, especialmente em altas doses ou em associação com outros fármacos depressores do SNC;
- Alterações hepáticas, com elevação de enzimas como ALT e AST, particularmente quando associado a anticonvulsivantes;
- Distúrbios gastrointestinais como náuseas, diarreia e redução do apetite.
O uso concomitante de canabinoides com outros medicamentos metabolizados pelo citocromo P450 pode resultar em interações farmacocinéticas relevantes, exigindo monitoramento.
Segundo a legislação sanitária brasileira, os produtos com cannabis autorizados para comercialização devem ser utilizados com Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), uma vez que não possuem registro como medicamento, e sim como produtos sob prescrição especial. A ausência de estudos conclusivos amplia a responsabilidade dos profissionais na decisão terapêutica e no acompanhamento de seus pacientes.
Para produtos com THC acima de 0,2%, exige-se receituário tipo A, e para concentrações inferiores, receita tipo B, reforçando a necessidade de controle e rastreabilidade na dispensação.
O incentivo à farmacovigilância ativa, com notificação de eventos adversos à Anvisa, é essencial para ampliar a base de dados sobre segurança e orientar futuras decisões regulatórias.
Aspectos regulatórios no Brasil
A regulação da cannabis medicinal no Brasil passou por mudanças graduais nos últimos anos, impulsionadas principalmente pela pressão de pacientes, associações civis e decisões judiciais. Atualmente, existem três formas principais de acesso legal a produtos derivados de cannabis no país:
- Medicamentos com registro na Anvisa
Até o momento, há apenas um medicamento registrado, contendo canabinoide sintético. Esse registro segue os critérios clássicos de eficácia, segurança e qualidade exigidos para qualquer fármaco aprovado no Brasil.
- Produtos à base de cannabis autorizados para fabricação e comercialização em farmácias
Esses produtos não são considerados medicamentos. A Anvisa exige que as empresas possuam Certificado de Boas Práticas de Fabricação, mas não obriga a comprovação formal de eficácia clínica. Devem ser vendidos sem manipulação, mediante prescrição médica, e com notificação de receita do tipo A ou B, conforme a concentração de THC.
- Importação por pessoa física com prescrição médica
A Resolução RDC nº 660/2022 permite a importação direta de produtos por pacientes, desde que haja prescrição por profissional legalmente habilitado. Os produtos podem conter diferentes composições de canabinoides e são, em sua maioria, provenientes de países como EUA, Reino Unido, Suíça e Holanda.
Além dessas categorias, decisões judiciais têm autorizado associações de pacientes a cultivar, produzir e distribuir derivados de cannabis com fins exclusivamente medicinais, o que evidencia lacunas regulatórias e a ausência de uma política pública unificada sobre o tema.
O Projeto de Lei nº 89/2023 propõe a criação de uma Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Produtos Derivados de Cannabis pelo SUS, mas ainda está em tramitação. Enquanto isso, o fornecimento público ocorre, em grande parte, por meio de judicialização, o que acentua desigualdades no acesso.
Atualmente, mais de 270 mil autorizações individuais de importação já foram concedidas pela Anvisa, e cerca de 30 produtos têm permissão para comercialização em farmácias, embora nenhum tenha passado por ensaios clínicos registrados no Brasil com avaliação conclusiva de eficácia.
O cenário regulatório, portanto, ainda se encontra em construção, exigindo ações mais assertivas da Anvisa para garantir que os produtos disponíveis atendam a critérios sanitários mínimos e que as indicações estejam respaldadas por evidências científicas consistentes.
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Referências Bibliográficas
- PINTO, C. D. B. S. et al. A expansão do mercado da cannabis medicinal no Brasil e os desafios da regulação. Cadernos de Saúde Pública, v. 40, n. 11, e00088624, 2024.
- INSTITUTE OF MEDICINE (US) COMMITTEE. The Health Effects of Cannabis and Cannabinoids: The Current State of Evidence and Recommendations for Research. Washington (DC): National Academies Press (US), 2017.
- NATIONAL CANCER INSTITUTE (US). Cannabis and Cannabinoids (PDQ®) – Health Professional Version. Bethesda (MD): NCI, 2024.
- AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Relatório de Análise de Impacto Regulatório – Produtos de Cannabis para fins medicinais. Brasília: Anvisa, 08 ago. 2024.