Olá, querido doutor e doutora! A atresia tricúspide é uma cardiopatia congênita cianótica rara que impõe desafios desde o período neonatal até a vida adulta. Este resumo aborda, de forma objetiva e prática, os principais aspectos clínicos, diagnósticos e terapêuticos relacionados à doença.
O sangue sistêmico que chega ao átrio direito é forçado a desviar para o átrio esquerdo por meio de uma comunicação interatrial, levando à mistura com sangue oxigenado e sobrecarga do ventrículo esquerdo.
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Definição e fisiopatologia
A atresia tricúspide é uma cardiopatia congênita caracterizada pela ausência completa da válvula tricúspide, o que impede o fluxo sanguíneo direto do átrio direito para o ventrículo direito. Com isso, o ventrículo direito se desenvolve de forma hipoplásica.
O sangue venoso que chega ao átrio direito é desviado para o átrio esquerdo por meio de uma comunicação interatrial, onde ocorre mistura com o sangue oxigenado proveniente dos pulmões. Esse volume misto é ejetado pelo ventrículo esquerdo, que assume função única.
A quantidade de sangue que alcança os pulmões depende de:
- Tamanho do defeito do septo ventricular (DSV);
- Presença de obstrução à via pulmonar;
- Anatomia dos grandes vasos.
Essa configuração determina se haverá cianose precoce (em casos com pouco fluxo pulmonar) ou sinais de insuficiência cardíaca (em situações de hiperfluxo).
Classificação anatômica
Tipo I – Grandes vasos em posição normal
Essa é a forma mais comum, representando cerca de 70% a 80% dos casos. O tronco pulmonar emerge do ventrículo direito e a aorta do ventrículo esquerdo. As diferenças entre os subgrupos se referem ao grau de obstrução pulmonar e ao tamanho do defeito do septo ventricular (DSV).
- No subgrupo Ia, há atresia da valva pulmonar e septo interventricular íntegro. Nesse cenário, o fluxo pulmonar é totalmente dependente de um canal arterial patente.
- O subgrupo Ib apresenta DSV pequeno associado a estenose pulmonar, o que reduz o fluxo pulmonar e pode gerar cianose intensa.
- Já no subgrupo Ic, o DSV é amplo e não há obstrução à via de saída pulmonar, o que leva a hiperfluxo pulmonar e, por consequência, risco de insuficiência cardíaca.
Tipo II – Transposição das grandes artérias (D-TGA)
Nesta forma, presente em aproximadamente 12% a 25% dos casos, a aorta origina-se do ventrículo direito e a artéria pulmonar do ventrículo esquerdo. A transposição altera significativamente a circulação e o manejo clínico.
- O subgrupo IIa combina atresia pulmonar e DSV, sendo o fluxo pulmonar dependente do canal arterial.
- O subgrupo IIb cursa com estenose pulmonar e DSV, configurando um cenário de fluxo pulmonar reduzido, mas não ausente.
- No subgrupo IIc, não há obstrução pulmonar e o DSV é largo, o que promove aumento do fluxo pulmonar e sintomas congestivos nas primeiras semanas de vida.
Tipo III – Malposições complexas dos grandes vasos
Esse grupo, mais raro (3% a 6%), abrange malformações anatômicas mais complexas, como tronco arterioso comum, dupla via de saída de ventrículo direito ou esquerdo e transposição corrigida congenitamente (L-TGA). Essas variações geralmente estão associadas a outras anomalias cardíacas e exigem abordagem individualizada.
Subgrupos baseados na via pulmonar
Além da classificação pela anatomia dos grandes vasos, também se considera o grau de obstrução à via pulmonar, classificando os casos em:
- Subgrupo “a” – com atresia pulmonar
- Subgrupo “b” – com estenose ou hipoplasia pulmonar
- Subgrupo “c” – com fluxo pulmonar preservado
Essa subestratificação é útil para orientar intervenções precoces, como uso de prostaglandinas, necessidade de shunt sistêmico-pulmonar ou bandagem da artéria pulmonar.
Epidemiologia e etiologia
Prevalência e distribuição
A atresia tricúspide representa cerca de 1,2 a 1,4 por 10.000 nascidos vivos, sendo a terceira cardiopatia congênita cianótica mais frequente, atrás apenas da tetralogia de Fallot e da transposição das grandes artérias. Ela afeta ambos os sexos de forma semelhante e não apresenta distribuição racial preferencial. Cerca de 1% a 3% de todos os defeitos cardíacos congênitos são classificados como atresia tricúspide, o que reforça sua importância na prática clínica pediátrica e neonatal.
Fatores associados no período gestacional
Embora a origem da doença esteja relacionada a um distúrbio na formação dos coxins endocárdicos durante o desenvolvimento cardíaco fetal, a causa exata permanece desconhecida na maioria dos casos. No entanto, alguns fatores têm sido observados com maior frequência entre os casos descritos:
- Infecções febris maternas no primeiro trimestre;
- Idade materna extrema (menores de 20 anos ou acima de 35 anos);
- Exposição a drogas ilícitas, como o uso paterno de cocaína;
- Traumas durante o período periconcepcional.
Esses fatores parecem estar relacionados à interferência no processo de delaminação das cúspides valvares, resultando em agenesia completa ou formação membranosa anômala do anel tricúspide.
Quadro clínico
Variação conforme o padrão hemodinâmico
A apresentação clínica da atresia tricúspide depende diretamente da quantidade de sangue que atinge os pulmões, ou seja, do equilíbrio entre fluxo pulmonar, presença de DSV e anatomia das grandes artérias. Com base nisso, os recém-nascidos podem apresentar três padrões principais: cianose precoce, sinais de insuficiência cardíaca congestiva, ou uma forma intermediária e transitória.
Cianose nos primeiros dias de vida
Nos casos com fluxo pulmonar restrito ou ausente, como ocorre nas variantes com atresia ou estenose pulmonar severa, o recém-nascido apresenta cianose central evidente já nas primeiras horas ou dias de vida, que tende a se agravar com o fechamento fisiológico do canal arterial. A hipoxemia pode vir acompanhada de taquipneia, acidose metabólica e irritabilidade, configurando uma urgência clínica. Esses pacientes geralmente pertencem aos subtipos Ia ou IIa da classificação anatômica.
Hiperfluxo pulmonar e insuficiência cardíaca
Por outro lado, quando o fluxo pulmonar é excessivo (como nos tipos Ic ou IIc, com DSV amplo e sem obstrução pulmonar), os sintomas de cianose são discretos ou ausentes inicialmente. Contudo, com a queda natural da resistência vascular pulmonar nas primeiras semanas de vida, o paciente evolui com sinais de insuficiência cardíaca: taquipneia persistente, dificuldade para mamar, sudorese profusa durante as mamadas, ganho ponderal insatisfatório e episódios de infecção respiratória de repetição.
Achados ao exame físico
O exame físico varia conforme o padrão circulatório. Em casos com hipofluxo, o precórdio costuma ser hipocinético, com segunda bulha única e murmúrio sistólico discreto ou ausente. Pode-se ouvir sopro contínuo de canal arterial se este estiver ainda patente. Em formas com hiperfluxo, observam-se sinais de congestão pulmonar, hepatomegalia discreta, taquicardia e sopros intensos, geralmente holossistólicos por DSV e mesodiastólicos por aumento de fluxo mitral.
Manifestações em fases posteriores
Crianças que não são corrigidas precocemente podem apresentar clubbing digital, policitemia secundária e episódios de hipóxia aguda em situações de estresse, especialmente se o fluxo pulmonar for dependente de colaterais ou ducto restrito. Já em adolescentes e adultos não tratados ou mal corrigidos, podem surgir arritmias, síncope, deterioração da capacidade funcional, endocardite infecciosa ou até eventos tromboembólicos.
Diagnóstico
Identificação clínica e suspeita inicial
O diagnóstico de atresia tricúspide pode ocorrer tanto no período pré-natal quanto após o nascimento. Em neonatos, a suspeita clínica surge diante de cianose precoce, taquipneia inexplicada ou sopros cardíacos associados a má perfusão ou dificuldade alimentar. A ausência de murmúrio em casos com obstrução pulmonar significativa também deve levantar suspeita, especialmente se houver saturações persistentemente baixas. O rastreio com oximetria de pulso antes da alta hospitalar tem sido um aliado importante na detecção precoce.
Achados no eletrocardiograma (ECG)
O ECG revela hipertrofia ventricular esquerda, dada a sobrecarga imposta ao ventrículo único funcional, e desvio do eixo para a esquerda (caracteristicamente entre -30° e -90°), o que é incomum em neonatos. É frequente observar também aumento da atividade atrial direita, mesmo com ventrículo direito hipoplásico. Esses achados, embora inespecíficos, reforçam a suspeita quando compatíveis com o quadro clínico.
Radiografia de tórax
Os achados radiológicos variam conforme o padrão de fluxo pulmonar:
- Em casos com hipofluxo, observa-se diminuição das marcas vasculares pulmonares e silhueta cardíaca normal ou discretamente aumentada.
- Já nos casos com hiperfluxo pulmonar, há cardiomegalia e vasculatura pulmonar aumentada, podendo sugerir congestão. O aumento da área da sombra do átrio direito também é um achado frequente, refletindo dilatação atrial secundária à obstrução ao escoamento.
Ecocardiograma: exame de escolha
O ecocardiograma transtorácico bidimensional com Doppler é o principal exame para confirmar o diagnóstico. Ele permite:
- Visualização direta da ausência de comunicação entre átrio direito e ventrículo direito;
- Avaliação da hipoplasia ventricular direita;
- Identificação da comunicação interatrial e interventricular;
- Análise do fluxo através das válvulas e da anatomia dos grandes vasos.
É também o exame indicado para guiar decisões terapêuticas imediatas, como a necessidade de prostaglandinas ou intervenções atriais (ex: septectomia).
Cateterismo e exames complementares
Embora o cateterismo cardíaco não seja mais rotineiramente utilizado para diagnóstico, ele pode ser necessário em casos com anatomia duvidosa, comunicação interatrial restrita ou na preparação para cirurgias paliativas como o Glenn e o Fontan. Já a ressonância magnética cardíaca e a angiotomografia são úteis em crianças maiores e adultos, especialmente na avaliação de colaterais, via pulmonar e função ventricular no seguimento.
Tratamento
Objetivo geral da abordagem terapêutica
O tratamento da atresia tricúspide é sempre paliativo e escalonado, já que a anatomia não permite correção biventricular. A meta é criar uma circulação funcional em série, redirecionando o retorno venoso sistêmico para os pulmões sem passar por um ventrículo subpulmonar. Esse objetivo é alcançado por meio de intervenções cirúrgicas sequenciais, adaptadas à anatomia individual e ao padrão hemodinâmico apresentado no período neonatal.
Conduta inicial no período neonatal
Nos primeiros dias de vida, o foco é estabilizar o paciente. Em recém-nascidos com fluxo pulmonar dependente do canal arterial, é fundamental iniciar infusão de prostaglandina E1 (PGE1) para manter a perviedade do ductus arteriosus. A dose inicial habitual é de 0,05 a 0,1 mcg/kg/min, com redução progressiva conforme a resposta clínica.
- Em casos de comunicação interatrial restrita, está indicada septectomia atrial cirúrgica ou septostomia com balão (Rashkind).
- Manter normotermia, equilíbrio ácido-básico, glicemia e calcemia é crucial para a estabilidade hemodinâmica.
- Oxigenoterapia deve ser usada com cautela, pois aumentos excessivos da saturação podem reduzir o fluxo sistêmico em contextos de hiperfluxo pulmonar.
Primeira etapa cirúrgica: controle do fluxo pulmonar
A escolha do procedimento inicial depende do volume de sangue que chega aos pulmões:
- Hipofluxo pulmonar: nesses casos, realiza-se um shunt sistêmico-pulmonar, geralmente o Blalock-Taussig modificado, conectando a artéria subclávia à artéria pulmonar por meio de um tubo de PTFE.
- Hiperfluxo pulmonar: nos pacientes com grande DSV e sem estenose pulmonar, indica-se a bandagem da artéria pulmonar (pulmonary artery banding) para limitar o fluxo e prevenir congestão pulmonar.
- Quando há transposição com obstrução subaórtica, pode-se optar pela cirurgia de Damus-Kaye-Stansel associada a shunt, conectando a artéria pulmonar proximal à aorta ascendente para garantir saída sistêmica.
Segunda etapa: anastomose cavopulmonar (Glenn ou Hemi-Fontan)
Realizada geralmente aos 4 a 6 meses de vida, a cirurgia de Glenn conecta a veia cava superior à artéria pulmonar direita, permitindo que o sangue venoso da metade superior do corpo alcance diretamente os pulmões, sem passar pelo coração. Essa etapa reduz a sobrecarga do ventrículo único, melhora a oxigenação e prepara o paciente para a cirurgia definitiva.
Terceira etapa: cirurgia de Fontan
Aos 2 a 4 anos de idade, realiza-se a cirurgia de Fontan, que direciona o retorno venoso inferior diretamente para os pulmões. As variantes mais utilizadas hoje são:
- Fontan com túnel extracardíaco
- Fontan com túnel intra-atrial (lateral tunnel)
Ambas podem incluir uma fenestração, que permite um pequeno desvio direita-esquerda controlado, funcionando como válvula de escape em situações de aumento de pressão venosa.
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Referências Bibliográficas
- DYNAMED. Tricuspid Atresia. Ipswich, MA: EBSCO Information Services, atualizado em 15 jul. 2025.
- MINOCHA, P. K.; HORENSTEIN, M. S.; PHOON, C. Tricuspid Atresia. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan.